27 outubro, 2021

Mais algumas notas sobre "Crepúsculo dos deuses"


Daniel Baz dos Santos[1]

 



Levado pelos teus comentários, Mauro, assisti de novo ao impressionante Crepúsculo dos deuses. Nas linhas seguintes, tentarei esboçar algumas impressões que tive, lamentando de antemão o pouco tempo disponível para fruir uma obra tão cheia de possibilidades.

A genialidade desta obra começa nos seus créditos iniciais. Vemos o nome da fatídica rua no cordão da calçada, numa primeira imagem-síntese de uma das temáticas centrais da obra, ou seja, o glamour associado à decadência. Seguindo este lampejo brilhante, somos forçados a ler os nomes dos atores escritos na calçada enquanto a câmera se movimenta até o espaço da ação. Aqui se tem uma analogia muito bem construída referente à oscilante verticalidade do sucesso. Familiarizamo-nos já nos créditos com a ideia de que os “astros” podem facilmente descer ao mais baixo do mundo. E pensar que Wilder imaginara um começo diferente, em um necrotério, onde os mortos contariam a situação na qual morreram, dando a deixa para Joe Gillis, o personagem de William Holden – introdução abandonada devido às gargalhadas da plateia-teste.

Há durante todo o filme uma constante reflexão entre o verdadeiro e o falso, entre a verdade e a mentira, tendo como eixo a temática da representação. Tudo começa com o contrassenso de Gillis que, estando morto, promete que irá relatar “The whole truth” e lança uma piscadela ao público do cinema, ao dizer que, se eles buscam a verdade, vieram ao lugar certo.

O cinema aqui é literalmente uma projeção dos desejos de todos, algo que já foi dito por Méliès, Godard e, há alguns poucos anos, por Slavoj Zizek, no seu O guia pervertido do cinema. O cinema é perverso, pois além de nos obrigar ao desejo, sugere que seu espaço natural é o das representações, nos forçando a desejar o que elas figuram. Logo no início do filme, ironicamente, o espaço da representação se associa ao espaço da mentira e o roteiro parece que lida o tempo inteiro com esta ambivalência, no terreno-limite entre a representação e o real. Temos a mentira contada por Gillis a respeito do carro no início do filme; a revisora de roteiros que fala mal do filme do autor sem saber que ele está presente; o produtor que recusou ...E o vento levou, revelando uma atitude contrária ao que se espera dele. Enfim, nada é exatamente o que parece ser...

Além disso, nesta sequência inicial, sugere-se a crise do cinema, entre a livre expressão do autor e as exigências do mercado. O produtor Sheldrake (Fred Clark) começa um devaneio a respeito das possibilidades do filme sobre beisebol e, conforme se aprofunda nesta história absurda, deita em um sofá, acomoda-se como quem sonha acordado (mesma posição de Gillis, quando Norman representa suas “bobagens” de cinema mudo para ele) e só é interrompido quando o mundo real (capitalista) viola da forma mais cruel sua criação semionírica: Gillis lhe pede dinheiro emprestado.

A apresentação de Norma Desmond também segue por este caminho. O plano em que atriz conhece o narrador se sustenta em um zoom inútil, tentando superar o obstáculo[2] de uma veneziana que impede a conexão entre o externo e interno, o que, mais uma vez, termina com Norma confundindo Joe Gillis com outra pessoa. Mais uma sacada genial: a única dimensão da figura de Norma que apreendemos com clareza neste momento é a sua voz. A voz que, como ela revela minutos a seguir, matou o cinema. Neste universo de aparências flutuantes, somente a ingênua Betty tenta separar o terreno da verdade e da mentira com clareza, mas quando deve julgar a ficção de Gillis, o faz pelo seu grau de sinceridade, escolhendo o único trecho biográfico de sua história para ser trabalhado.

Interessante também como o filme usa dos recursos sonoros para interromper ou torturar a protagonista. A cena mais emblemática é justamente aquela em que ela interpreta Chaplin e é brutalmente interrompida por um telefone. É tragicômico também que DeMille ande a todo o momento com um jovem que segura um microfone, mesmo quando não estão gravando, durante toda a sequência nos estúdios da Paramount.

Falaste com propriedade sobre as categorias metalinguísticas, não tenho mais a dizer. Termino com uma pergunta: uma vez mencionaste a inverossimilhança em Kill Bill [nota do editor: esse texto será publicado em breve no blog]. Assim, como Max sabia que Gillis iria a casa, a ponto de arrumar a cama para recebê-lo? Seria ele tão onipresente? Enigmas que só as obras-primas produzem!

PS 1: Buster Keaton não está totalmente mudo. Tem duas falas durante o pôquer e elas são iguais: “Eu passo”. Como se recusasse a jogar este “jogo” novamente.

PS 2: agradeço-te por rever este filme. A fantasia de Norma, plasmada num espaço cheio de fotografias suas, é uma imagem perfeita de uma das definições de Luís Costa Lima, quando este se refere à ficção do próprio eu, na qual nada escapa à alçada do individual e, por isso, está fadada ao fracasso, pois não se relaciona com o imaginário de outros seres humanos. É lógico que pensei em exemplos literários (a começar por Quixote), mas esta é também uma possibilidade intrigante.



[1] Recomenda-se ler, primeiro, o texto abaixo deste.

[2] Outra cena em que aparece um obstáculo que impede um desenvolvimento maior da interação é aquela em que Norma e Joe conversam francamente pela primeira vez, com ela falando de sua história sobre Salomé: ambos estão separados por uma mesa coberta de páginas e páginas de ficção histórica.

Dez comentários sobre "Crepúsculo dos deuses"

 

Mauro Nicola Póvoas

 



Outro dia, no Telecine Cult, revi Crepúsculo dos deuses (Sunset blvd., 1950), de Billy Wilder, grande diretor. Já tinha visto esse filme há muito, muito tempo, e me lembro que na época gostei. Agora, pensei: está na hora de rever a película. É um grande filme, entra folgado em uma lista particular que está eternamente em construção, com os meus 25 filmes de todos os tempos (desisti de um lista de somente 10). A seguir, alguns dez pequenos comentários sobre o filme, que queria dividir com os interlocutores:

1) Além de tudo que apontarei a seguir, o filme me marca por um dado sentimental e pessoal. Meu pai, Aldo Póvoas, foi um fanático por cinema, bombardeado pelo star system hollywoodiano das décadas de 1940 e 1950. Ainda guardamos, meus irmãos e eu, uma coleção de mais de 130 fotografias enviadas para ele pelas maiores atrizes dos Estados Unidos, a maioria assinadas. Uma cena em especial me emocionou no filme: Norma Desmond (Gloria Swanson) assinando, ela mesma, as fotos para enviar aos fãs. Depois sabemos que não há fãs, era tudo armação do mordomo-diretor-marido. Ainda neste diapasão, outro dia vi um episódio de Além da imaginação (Twilight zone), de 1959, que homenageia Crepúsculo dos deuses. E qual a atriz principal do episódio? Ida Lupino, a atriz preferida do meu pai, que emula Gloria Swanson na série. Tudo se conecta!

2) Filmes com caráter metalinguístico são para mim invencíveis; mesmo os fracos, como o Nine, com Daniel Day-Lewis, merecem ser vistos. Lembro de Quero ser John Malkovich, Adaptação e Sinédoque, Nova York, de Spike Jonze/Charlie Kaufman; Noite americana, de Truffaut; 8 ½, de Fellini; Cidade dos sonhos, de Lynch; Era uma vez em... Hollywood, de Tarantino etc. A visita de Norma ao set da Paramount comandando por Cecil B. DeMille está entre as grandes cenas do cinema americano. O filme consegue equilibrar de forma genial uma das mais lindas homenagens ao cinema, enquanto arte e entretenimento, ao mesmo tempo em que, das entranhas da indústria, traz uma das mais impiedosas críticas a essa mesma indústria.

3) A presença – claro que muda – de Buster Keaton jogando cartas é outro toque genial. A homenagem ao cinema sem som e ao cinema em geral está em tudo, como em Norma Desmond, lá pelas tantas, imitando Charlie Chaplin.

4) Tenho uma velha tese: os filmes clássicos, para atingirem esse status, necessitam de grandes finais. Que final o deste filme, entre os maiores do cinema, com Norma Desmond descendo as escadas, já sem razão – ou está ela somente fazendo a sua última grande última? E o começo não fica atrás, com a câmera fixada no asfalto da Sunset Boulevard, até que o espectador chegue ao corpo afogado na piscina. A partir daqui, enumero dois itens intertextuais, o 5 e o 6.

5) Impossível não lembrar do machadiano Memórias póstumas de Brás Cubas, já que todo filme é narrado por um morto, o que possibilita um olhar acurado e distanciado sobre aquela máquina de moer carne que é Hollywood.

6) Como não lembrar também de Cidade dos sonhos (Mulholland Dr.), filme de David Lynch que também traz um olhar carinhoso e/ou impiedoso sobre o cinema hollywoodiano, e que igualmente tem uma rua de Los Angeles no título?

7) Tecnicamente, o filme é perfeito: a fotografia em preto-e-branco, o roteiro, a música, os atores, a direção do sempre competente Billy Wilder. É o auge de uma indústria, a do cinema.

8) Até por conta do que comentei acima, não é de se estranhar que o filme tenha ganhado três Oscars: direção de arte, música e roteiro. Concorreu a filme, diretor, atriz, ator, atriz e ator coadjuvantes. Fiquei pensando: como é que não ganhou melhor filme?! Aí fui ver quem ganhou em 1951: A malvada – calei-me. Era uma época de deuses no mundo da tela. Por exemplo: o Oscar de 1949 foi para o Hamlet de Laurence Olivier.

9) O mordomo Max, vivido grandemente por Erich von Stroheim, é um dos mais importantes personagens da trama, pois na verdade ele que é o diretor da casa e da vida de Norma (na verdade, não será o diretor mesmo do filme?), e até o fim ele faz essa função. O filme é mesmo para cinéfilos (tanto que os personagens são roteiristas, atores, diretores), com várias alusões cinematográficas, como as já aludidas de Chaplin, Keaton e DeMille.

10) Nancy Olson, a roteirista ambiciosa Betty Schaefer, que é a namoradinha do cínico e folgazão Joe Gillis (William Holden), está viva ainda, em outubro de 2021, com 93 anos (nasceu em 1928, mesmo ano, aliás, do meu pai – estou dizendo, tudo se conecta...). No filme, ela faz uma menina cheia de sonhos, que tem exatamente 22 anos (idade da atriz em 1950), o que reforça uma atmosfera ambígua do filme: por um lado, traz o onírico, matéria-prima do cinema, mas também, por outro, reforça uma verossimilhança “estranha”, como se todos estivessem fazendo os papéis que protagonizam na realidade: DeMille, o diretor; Swanson e Keaton, os decadentes; Olson, a que está começando a carreira etc.