22 setembro, 2020

Uma segunda antologia da pandemia: de novo, o cinema sob o domínio do vírus

Mauro Nicola Póvoas



 

Nestes tempos pandêmicos, volto a abordar um filme sobre o coronavírus, que se alastra pelo mundo neste 2020, e teima em não ir embora. Falei na outra frase em “filme”, mas não sei se o termo correto é este, talvez fosse série. Quem me conhece sabe que não gosto muito de séries, pouco vejo e quase nada sei sobre elas, e o blog se determina a falar de filmes, não de séries, então fiquei um tempo matutando se deveria escrever ou não sobre Feito em casa (Homemade), que está disponível na Netflix desde 30 de junho de 2020.

Mas enfim, como podem ver, ganhou a ideia de que se trata de um filme em episódios, assim como Antologia da pandemia, por mim aqui comentado em agosto, embora a Netflix venda a coisa toda como uma série. Tanto assim que, na plataforma, aparece um “Volume 1”, aludindo ao fato de que em breve possa surgir uma segunda temporada, além de na descrição aparecer que os episódios podem ser assistidos na ordem que o espectador quiser, sem seguir o pré-estabelecido. Eu, no entanto, aferrado à ideia do conjunto, optei por ver na sequência.

São 17 curtas, com duração de 5 a 11 minutos, dirigidos por gente de vários lugares do mundo (chama a atenção as origens híbridas dos envolvidos, que colocam em xeque a noção de nacionalidade), projeto idealizado pelo chileno Pablo Larraín. Há uma mescla de diretores menos conhecidos com nomes importantes, como o italiano Paolo Sorrentino, Oscar de melhor filme estrangeiro por A grande beleza, todos convidados a darem as suas visões do momento, obedecendo ao isolamento social e utilizando os meios disponíveis – histórias autoficcionais, familiares como atores, câmeras de celulares, cenários extraídos das próprias casas. Chama a atenção dois episódios dirigidos por atrizes hollywoodianas, Kristen Stewart e Maggie Gyllenhaal, com destaque para essa última, estreando atrás das câmeras e responsável pelo melhor episódio da coletânea, em minha opinião.

Notam-se curtas que vão por um caminho mais poético, enquanto outros seguem mais estritamente a estrutura narrativa, com uma oscilação na qualidade, como sempre ocorre em filmes deste tipo. É o que pretendo analisar rapidamente a seguir, sempre aludindo ao curta pelo diretor, pois a própria Netflix, na apresentação inicial do material, não dá ênfase a um eventual título, que aparece somente ao final, nos créditos.

O primeiro curta, dirigido pelo cineasta francês Ladj Ly, mostra um drone, manipulado por um garoto negro, pelos subúrbios de Paris, em sobrevoo que serve para caracterizar a nova vida nas ruas, imposta pelo vírus. Esse episódio, com poderosas imagens panorâmicas, encontra um interessante contraponto no décimo sétimo, da iraniano-americana Ana Lily Amirpour, com narração de Cate Blanchett, em que uma ciclista, a própria diretora, circula por uma desértica Los Angeles, em um retrato do silêncio que reina na meca do cinema mundial – teatros fechados, a Calçada da Fama sem ninguém tirando fotos, o trânsito desengarrafado. Se no começo da pandemia todos são atingidos, como se vê no diálogo poético estabelecido entre o primeiro e o último episódios, obviamente que, com o passar do tempo, as camadas sociais vulneráveis são as que mais sentem os efeitos da situação atípica.

Falando em elementos poéticos, o terceiro curta segue esse caminho, com a norte-americana Rachel Morrison declamando um poema para seu filho de cinco anos. Desta maneira, o pequeno filme funciona como um registro, para que o futuro adulto possa ver como a sua subjetividade infantil encarou aquele momento tão extraordinário.

Antes, no segundo episódio, Sorrentino encena um encontro inusitado, sarcástico e ambíguo, entre o Papa Francisco e a Rainha Elizabeth II, em alusão direta à estrutura dialogada de Dois papas, de Fernando Meirelles, também disponível na Netflix. A curiosidade é que as duas personagens são “interpretadas” por bonecos, dentro da ordem de usar somente os objetos e as ferramentas disponíveis para a gravação. Mesmo espírito que anima o quinto, ambientando em Lisboa, do zambiano-galês Rungano Nyoni, ao colocar na tela conversas por meio de aplicativos, em um episódio inexplicável e confuso, de longe o mais dispensável da antologia – pode pular sem medo, ou aproveitar para ir no banheiro ou tomar água (o que eu fiz).

Outros que não me agradaram muito são o oitavo, da japonesa Naomi Kawase, que foge do formato narrativo tradicional, ao seguir pelo caminho poético; o décimo quarto, de Kristen Stewart, que faz uma mulher insone por causa do estado de coisas no mundo e de um grilo que a incomoda; e o décimo sexto, do igualmente chileno Sebastián Lelio, que causa estranheza, ao dar uma forma de musical ao seu curta.

O quarto episódio, do também produtor Larraín, oferece a história de um idoso que busca o contato com uma antiga namorada, por videochamada, e que parece ir por um lado, mas dá uma guinada, desconcertando o espectador, que fica entre a surpresa e o riso. É um dos melhores episódios, ao lado do décimo, dirigido por Maggie Gyllenhaal, único que toma o rumo da ficção científica, ao criar um mundo distópico dominado pelo vírus – aqui também, como em um dos episódios de Antologia da pandemia, há a presença de uma encomenda que chega pelos Correios, algo comum em um mundo em que comprar em lojas físicas tornou-se algo arriscado. Essas duas histórias são das maiores em extensão, permitindo reviravoltas e um maior desenvolvimento das personagens.

O sexto, da mexicana Natalia Beristáin, é angustiante, ao trazer uma menina sozinha, executando todas as tarefas da casa. O que houve? Seus pais morreram? Saíram em busca de comida, em um mundo dominado pelo caos, e não voltaram? O espectador, aflito, fica sem saber dos fatos que levaram àquela condição de isolamento e solidão, enfim amenizada na conclusão.

Outros capítulos que se destacam são o sétimo, em que o diretor alemão Sebastian Schipper encena um embate consigo mesmo, numa história clássica de doppelgänger (duplo; ou, no caso, triplo!), em que se misturam humor e tensão, ao mostrar que o isolamento pode nos levar às bordas da loucura, e o décimo segundo, que traz indiretamente a presença nacional, pois é dirigido pelo norte-americano Antonio Campos, filho do conhecido jornalista brasileiro Lucas Mendes. Com toques de thriller, deixa o público alerta até o final em aberto, que não responde às dúvidas plantadas ao longo da narrativa de 8 minutos.

Uma característica que une alguns episódios é a autoficção, em que o diretor conta a sua história utilizando diretamente seus familiares para trazer dados reais (ou não) para o tecido narrativo, com resultados sensíveis. É o caso do nono, do escocês David Mackenzie; do décimo terceiro, do sino-canadense Johnny Ma; e do décimo quinto, da diretora britânica de origem indiana Gurinder Chadha. Já os libaneses Nadine Labaki e Khaled Mouzanar, no décimo primeiro segmento, realizam uma ode à imaginação, em uma situação tão dura para todos. O curta pode causar um pouco de estranheza e até cansar, ao longo de seus 7 minutos, mas no fim um paratexto explica o contexto da gravação e ilumina o episódio.

O cinema, desde o seu início, apresentou-se com uma característica fundamental, que o conforma social e artisticamente: foi sempre coletivo na criação e na recepção. Esse último aspecto mudou desde o advento e a afirmação, em sequência, da televisão, do videocassete, depois do DVD/Blu-Ray e, agora, do streaming (que se solidificou de vez na pandemia), equipamentos e plataformas que foram, cada vez mais, levando a recepção do cinema para dentro dos lares.

Feito em casa traz, inevitavelmente, uma reflexão não sobre a já dada questão da recepção fílmica, que pode ser coletiva ou individual, mas sim sobre a produção. Assim, qual o futuro do cinema enquanto indústria criativa que sustenta milhares de pessoas, tendo-se no horizonte uma coletânea como essa oferecida pela Netflix, que traz pequenos curtas com boa qualidade, filmados individualmente ou com equipes reduzidíssimas, com parcos recursos e sem efeitos especiais de grande monta?

Se a literatura, de quem o cinema é primo-irmão, se constitui como uma arte em que a escrita se dá sozinha, assim como a leitura, a possibilidade do fim do cinema como experiência coletiva, em sua produção e recepção, é assustadora, pois aniquilaria o caráter de sociabilidade e comunhão que ele “pegou emprestado” de outro parente próximo, o teatro. No meu caso específico, posso afirmar que estou com saudades de ver uma película na telona, em uma sala cheia de desconhecidos, até que subam os créditos (demonstração efetiva de quantos profissionais estiveram envolvidos na produção), os quais avisam que daqui a pouco é hora de, que pena!, voltar para o mundo lá fora.

A tecnologia domina a vida das pessoas, transformando-as em cineastas em potencial, já que todos carregam um celular com câmera de última geração na palma da mão. O tempo vai dizer se isso é bom ou ruim para o futuro do cinema, que parece estar numa encruzilhada, sem saber para onde vai. Na verdade, estamos todos, em 2020, sem norte e com perspectivas negativas a partir do panorama que se desenha: crise, recessão, diminuição das liberdades. Só nos resta aguardar os próximos capítulos.

11 setembro, 2020

"O monstro do ártico" a contrapelo

 Daniel Baz dos Santos



 

Com a recente confirmação por parte de John Carpenter de que a refilmagem de Enigma de outro mundo (1982) está em andamento, decidi rever O monstro do ártico (1951), de Christian Nyby e Howard Hawks, obra na qual a película da década de oitenta se baseou. Numa primeira assistida, é difícil ir muita além da leitura canônica: O monstro do ártico é, sem qualquer intenção de disfarce, um filme macarthista. Sua estrutura narrativa está soterrada pelo ideal alegórico que anseia alertar a população estadunidense a respeito da ameaça comunista, postura que está em outras obras da mesma década, sendo problematizada, no mesmo ano, pelo clássico O dia em que a terra parou (1951), de Robert Wise, e reforçada pela antológica ficção científica Vampiros de almas (1957), de Don Siegel.

No entanto, a mimese ficcional é uma atividade desviante, repleta de possibilidades refratárias (alegóricas, simbólicas, afetivas, ideológicas) que costumam se embaralhar dentro das inúmeras tensões que entram em jogo durante a configuração formal, muitas vezes à revelia do indivíduo que a idealizou. Ao engajar-se na produção do discurso estético, o cineasta, munido das contradições próprias do material expressivo – contaminado por suas pulsões inconscientes, por seus cacoetes retóricos, pelos modelos discursivos, pelos padrões culturais e pelas inúmeras potências desconhecidas de seu próprio imaginário, ainda em estado de latência – pode produzir, junto daquilo que deseja nos apresentar, a desfiguração de seu próprio discurso. Em outras palavras, é possível ler muitas obras artísticas a contrapelo, na contramão daquilo que seus realizadores quiseram dizer, validando conjecturas que se movem na direção oposta de suas reais intenções, que se contrabandeiam para dentro da estrutura narrativa e corroem toda pretensão de unidade na visão de mundo exibida. Experimentem, por exemplo, assistir aos filmes da série Velozes e furiosos procurando elementos para uma crítica às convenções do que construímos culturalmente como “masculinidade”. É um prato cheio.

Tentemos o mesmo exercício em O monstro do ártico, escavando as ranhuras no discurso da obra, lendo suas fendas e contradições, visto que, ao rever o filme (e esta é a minha terceira ou quarta vez), novas possibilidades de interpretação se desvelam para além de sua alegoria central. Comecemos pelo seu enredo: uma equipe da força aérea norte-americana, sediada no Alasca, é incumbida de investigar um acidente ocorrido próximo a uma estação científica localizada duzentos quilômetros ao norte. Com a ajuda dos pesquisadores reunidos no local, liderados pelo Dr. Carrington, e acompanhados pelo jornalista Scotty, os militares encontram uma nave extraterrestre submergida no círculo polar ártico. Depois de destruir o que sobrara do veículo interplanetário, a comitiva descobre um alienígena congelado sob a neve e o levam, preso no bloco de gelo, para a base.

O encontro entre cientistas e militares nos momentos iniciais do filme é fundamental para que entendamos as contradições éticas e ideológicas expostas por ele. As interações entre os grupos são representadas pelas figuras do Dr. Carrington, quem está no comando da comitiva, já que aquela é sua estação de estudos, e pelo capitão Hendry, que não esconde seu desdém pelos pesquisadores, alegando que eles passam o dia “procurando o rabo de ursos polares”, ou que, quando interessados por algum assunto, lembram “crianças babando por um brinquedo novo”, comportamento desdenhoso que é replicado pelos demais oficiais. Há uma cena, por exemplo, em que, prestes a ouvir a explicação do que seria uma videira telegráfica (plantas que conseguem se comunicar entre si) boa parte dos militares se retiram desinteressados para tratar de assuntos que julgam mais importantes. Em outra, Hendry interrompe um dos cientistas, ao não entender nada do que ele diz, julgando mais prático apenas confiar na sua palavra.

Para traduzir em tessitura semiótica esses elementos, a composição da tomada que nos apresenta Carrington o situa à esquerda do plano, cujo centro é ocupado pelo complexo maquinário que ele opera na ocasião, repleto de botões e mecanismos incompreensíveis para os observadores ao redor. Nosso olhar é convidado a se desviar do objeto em direção ao cientista, obrigando que sua identidade narrativa passe pela mediação do código hermético e desconhecido da ciência, representado pelo aparelho. Os comandos que ele dá aos indivíduos que trabalham ao seu lado também estão repletos de um jargão ininteligível, encapsulado em falas sempre calmas, sérias e ponderadas, atitude oposta, em todos os aspectos, à forma como Hendry é introduzido, a saber: em uma mesa de pôquer, falando vulgaridades enquanto se diverte com seus subordinados como se fosse um deles.

E não é somente com Carrington que o todo discursivo do capitão entra em conflito, mas também com as expectativas do jornalista Scotty, a quem o desejo de levar a história da invasão alienígena para o mundo é suspenso o tempo inteiro pelo militar, ainda que a relação entre eles seja, ao fim, marcada pela amistosidade. A partir desses elementos, torna-se possível afirmar que um componente essencial na construção de O monstro do ártico é a disjunção intrínseca à dinâmica comunicacional das personagens. Não há fluidez ou linearidade nas conversas entre os grupos e, muitas vezes, dentre os indivíduos pertencentes a um mesmo nicho. Esse ideal é expresso, por exemplo, nas constantes tentativas dos militares em comunicar ao general Fogarty o que está acontecendo na base e receber, em contrapartida, as orientações a respeito de como devem proceder. As mensagens do superior chegam aos pedaços, incompletas, ou completamente alheias à realidade do local, logo virando piada entre os demais oficiais.

Esse descompasso imanente às trocas de informação entre os sujeitos, e a atitude segregacionista que muitas vezes as dirige, também conduz a subtrama do romance entre Hendry e Nikki, assistente de Carrington. A mulher o conheceu em momento anterior e, depois de uma noite regada a bebidas e gracejos, ambos se despediram sem que a real natureza de sua relação ficasse clara, o que faz o capitão se sentir abandonado e a secretária estranhar seu ressentimento. Sendo assim, a comunicação entre os seres, seja na sua esfera intelectual, seja na sua dimensão efetiva, está repleta de idissincronias que expõem uma sociedade desregulada e fragmentada, feita de falhas interlocutórias sistemáticas e expectativas constantemente frustradas.

Depois dos contatos iniciais entre os envolvidos na investigação, todos se dirigem ao local do acidente para entender o ocorrido. Quando avistam os rastros deixados pela queda do objeto não identificado, os homens se aproximam receosos da grande marca no chão, que indica a presença de uma aeronave dotada de formato diferente de qualquer veículo conhecido. Aqui, as personagens se irmanam diante de índices que nenhum deles pode interpretar, independentemente de suas formações e históricos. Isso é transmitido em uma das cenas mais bem realizadas do filme, quando os exploradores, para entender a dimensão e feitio do objeto, decidem se posicionar nas bordas do buraco deixado por ele. A câmera se afasta, tornando possível perceber que se trata de um círculo. Por esta via, a cena conflita duas escalas distintas: a humana e a extraterrena; sendo que aquela, apequenada e hesitante, não consegue transfigurar/traduzir o impacto causado por esta. Estamos diante, portanto, de novo descompasso, que estará na raiz do medo sentido pelos humanos, notadamente dos militares que desejam destruir o disco voador o mais rápido possível.

Além disso, opera aqui outro campo semântico. As personagens ficam em roda e abrem os braços, mas suas mãos não se tocam. Há um lacuna discreta, mas decisiva, entre seus corpos. Nesse sentido, se, em uma camada, a sequência sugere uma possível comunhão entre os de cá (terráqueos), contra os de lá (alienígenas) em outra, a disposição dos indivíduos em cena relembra as dissidências insolúveis entre eles. A força deste momento tão decisivo só é possível graças às possibilidades estéticas da neve, que possibilita aos demais componentes visuais emergir na forma de perturbação em sua monotonia branca e regular, espécie de tábula rasa para os conflitos que interessam ao enredo.

A dimensão climática no filme, contudo, assumirá caráter ainda mais dramático. Para entendermos esse aspecto, é necessário situar os desdobramentos da trama. Após levar o alienígena para a base, o soldado responsável por vigiá-lo esquece um cobertor elétrico ligado sobre ele, o que derrete o bloco de gelo no qual a criatura se encontrava e permite que ela fuja para fora do complexo científico. A partir de então, todos os problemas de comunicação já anunciados se projetam nas interações dos sujeitos com o espaço ao redor. A segregação aumenta consideravelmente, com agremiações se formando em cômodos distintos, projetos secretos sendo implementados, informações mantidas em sigilo e portas sendo fechadas ou transpostas à força. Nesse sentido, a invasão deixa de ocorrer apenas entre a criatura do lado de fora e os seres dentro da base, mas também no interior da própria comunidade humana.

A desconfiança e a paranoia são evidenciadas em mais de uma oportunidade, ainda que não tenham aqui a mesma relevância que demonstrarão na refilmagem de John Carpenter. Contudo, como ocorre na versão de 1982, é neste ponto que o frio e a tempestade de neve constante desempenham outro papel narrativo-expressivo. Por conta das baixas temperaturas, dois fenômenos tomam conta das ações e da mise-en-scène. Primeiramente, as personagens entram e saem dos ambientes, despindo ou vestindo suas roupas, o que conota a natureza intercambiável dos papéis que elas assumem, além de ser uma espécie de metáfora visual para as inúmeras situações de encobrimento e desvendamento que se sucedem durante suas interações.

 Além disso, na maioria dessas circunstâncias, é necessário trancar as portas rapidamente, após o trânsito das personagens de dentro para fora das salas e vice-versa, em ordem de evitar o frio (ou preservá-lo, no caso do cômodo em que o alienígena é mantido no início do filme). Em todos estes momentos, em que os humanos se engajam com energia no selamento de algum espaço, reforça-se seu medo em relação à alteridade e ao mundo desconhecido por eles. Evidenciam-se, assim, seus desejos isolacionistas e sua incapacidade de compartilhar o território com alguém de origem distinta, recurso que será reutilizado (e redimensionado) em Os oito odiados, de Quentin Tarantino, outro manifesto a respeito das fraturas existentes na formação estadunidense. Complementar a isso, as subsequentes aparições e ataques do monstro ocorrem sempre nos espaços-limite dos umbrais, à beira das portas e entradas, o que sinaliza para uma iconografia do exílio e do estrangeiro e amplia a tensão entre o universo familiar e o outro, considerado estranho.

Nesse ponto, os conflitos se adensam. Os militares não conseguem conviver com os cientistas. O jornalista invoca a liberdade de imprensa, mas não consegue divulgar sua história. As poucas ordens do general são desobedecidas. Hendry assume de vez a autoridade que era de Carrington. Os diretores do filme não se furtam de demonstrar as divergentes visões de mundo dos dois contendores, cristalizando-as em frases-ideias como “Não há inimigos na ciência, apenas fenômenos para estudar”, dita pelo pesquisador, ou “Eu não trabalho para o mundo, mas para o exército dos Estados Unidos”, pronunciada pelo capitão.

Essas discrepâncias de opiniões e posturas tornam-se mais críticas ao serem retratadas por uma câmera geralmente afastada, avessa a closes, e que raramente se concentra em um único indivíduo. Na maior parte das cenas de diálogos de O monstro do ártico (e não se esqueçam de que elas dominam o filme), as personagens envolvidas se aglomeram ao mesmo tempo dentro da tomada, recortadas geralmente na altura dos joelhos (ou seja, ainda que os planos sejam mais abertos, eles se beneficiam daquela naturalidade do plano americano defendida por Griffith). Há uma economia de cortes durante os diálogos e uma ausência total de recursos como plongée e contra-plongée ou campo e contracampo, com as réplicas e tréplicas sendo todas expostas em um mesmo take imóvel.

Dessa forma, nosso olhar é provocado a vagar durantes as conversas, errando pelos sujeitos do discurso, observando seus ditos, suas falas e reações, como se não houvesse um ponto único no qual fixar nossa atenção (ambiguidade que estava no centro do cinema realista para Bazin e que foi incorporada às convenções do cinema da era dos grandes estúdios). Essa perturbação se manifesta na contramão do que a composição convencional da cena pretender trespassar e corrói qualquer intento monológico por trás das discussões empreendidas, princípio que fica evidente, e se incorpora espontaneamente na tessitura semântica, na sequência em que os personagens definirão o que fazer a respeito da criatura.

Nesse momento, em que os militares decidem aniquilar o invasor, a dimensão verbal de O monstro do ártico entra em conflito com a dimensão visual, sendo este o ápice de todo o processo de desconjunção comunicativa que comanda o filme. No início da narrativa, quando a criatura está no bloco de gelo, acompanhamos as descrições que os militares fazem dela submersa e criamos uma expectativa imagética que nos é externada por meio das possibilidades e limitações da palavra falada e reforçada pela descrição nos sinistros olhos da criatura. Esta lacuna entre um todo dizível e outro visível, e o desconforto do ato de olhar como contraparte do ato de se dar a ver, é estimulada pelo filme nas aparições do monstro, sempre rápidas, em ambientes de pouca iluminação, e situadas no fundo dos cenários e dos planos. Sua visualidade é feita de fragmentos de elementos ditos e parcamente observados, e isso está na raiz dos conflitos apresentados pelo filme.

Complementando esses procedimentos, antes do confronto final, os oficiais discutem nos mínimos detalhes como o ataque será executado. Mais uma vez, é seu enunciado oral que cria um todo visível a partir do qual podemos nos situar e calibrar nossas expectativas. A visibilidade da criatura está, mais uma vez, condicionada ao poder de nomeação e descrição dos seres humanos. Coerente com isso, quando ela finalmente aparece, a luz se apaga, visto que Carrington desligou o gerador para protegê-lo do mecanismo elétrico preparado para abater o monstro. Para além das questões de ordem técnica que certamente influenciaram as escolhas na retratação do extraterrestre, a ausência de dimensão visível concreta e estável dele culmina – novamente, a contrapelo – no processo de dominação de sua figura operado por parte dos terráqueos.

A morte do alienígena é cruel. A ordem é eletrocutá-lo até que não reste nada (não deixa de ser irônico que criatura tão influenciada pelo monstro de Karloff, no Frankenstein de 1931, pereça vítima do elemento que deu vida ao outro). No lugar em que ele foi atingido, sobra apenas um monte reduzido de cinzas. O filme termina, contudo, com a história de Scotty, finalmente autorizado a transmitir por rádio a narrativa que presenciou. O final é o trecho mais lembrado do filme, no qual o jornalista, depois de celebrar a ação dos militares, clama: “Vigiem os céus. Continuem olhando. Continuem vigiando os céus”. No entanto, tendo-se em conta o escrutínio dos ruídos e as perturbações produzidos no interior da narrativa, esta cena pode ser também lida na contramão das interpretações convencionais. Dessa maneira, a ânsia manifesta de tornar o desconhecido visível, para poder então dominá-lo, é sintoma de uma comunidade que não criou um espaço interno onde a alteridade possa ser verdadeiramente vista. Nesses termos, o discurso final reforça a univocidade, o autoritarismo, o preconceito e a xenofobia da sociedade estadunidense, revelando, assim, os verdadeiros ideias que estão na raiz de uma postura que se pretende nobre e bravia e que corroem a intenção mais imediata do filme de dentro para fora. Por esta via, quando os créditos sobem, acompanhados de uma característica marcha militar, a música já não consegue exaltar os heróis e seus feitos, mas se converte em trilha de terror perfeita para aquilo que suas ações realmente representam. Está construída, portanto, a contrapelo, uma crítica ao macarthismo e aos seus valores.

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Penso em terminar este texto no parágrafo anterior, mas seria desonesto. Falando direto do Brasil de 2020, destruído por Bolsonaro e pela sua incompetência de lidar com a pandemia de Covid-19 (ou com qualquer outro assunto), ainda me assombra outro momento de O monstro do ártico, não citado ao longo da análise, em que o Dr. Carrington, cansado e desanimado com a postura intolerante e negacionista dos militares, comunica que apenas a ciência pode conquistar os avanços que as armas jamais sonharão. Encerro, então, movido pelo contexto contemporâneo, com outra grande lição de O monstro do ártico: da próxima vez, não sigam o capitão.