Daniel Baz dos Santos[1]
Levado pelos teus comentários, Mauro, assisti de novo
ao impressionante Crepúsculo dos deuses. Nas linhas seguintes, tentarei
esboçar algumas impressões que tive, lamentando de antemão o pouco tempo
disponível para fruir uma obra tão cheia de possibilidades.
A genialidade desta obra começa nos seus créditos
iniciais. Vemos o nome da fatídica rua no cordão da calçada, numa primeira
imagem-síntese de uma das temáticas centrais da obra, ou seja, o glamour associado à decadência. Seguindo
este lampejo brilhante, somos forçados a ler os nomes dos atores escritos na
calçada enquanto a câmera se movimenta até o espaço da ação. Aqui se tem uma
analogia muito bem construída referente à oscilante verticalidade do sucesso.
Familiarizamo-nos já nos créditos com a ideia de que os “astros” podem
facilmente descer ao mais baixo do mundo. E pensar que Wilder imaginara um
começo diferente, em um necrotério, onde os mortos contariam a situação na qual
morreram, dando a deixa para Joe Gillis, o personagem de William Holden – introdução
abandonada devido às gargalhadas da plateia-teste.
Há durante todo o filme uma constante reflexão entre
o verdadeiro e o falso, entre a verdade e a mentira, tendo como eixo a temática
da representação. Tudo começa com o contrassenso de Gillis que, estando morto,
promete que irá relatar “The whole truth” e lança uma piscadela ao público do
cinema, ao dizer que, se eles buscam a verdade, vieram ao lugar certo.
O cinema aqui é literalmente uma projeção dos desejos
de todos, algo que já foi dito por Méliès, Godard e, há alguns poucos anos, por
Slavoj Zizek, no seu O guia pervertido do cinema. O cinema é
perverso, pois além de nos obrigar ao desejo, sugere que seu espaço natural é o
das representações, nos forçando a desejar o que elas figuram. Logo no início
do filme, ironicamente, o espaço da representação se associa ao espaço da
mentira e o roteiro parece que lida o tempo inteiro com esta ambivalência, no
terreno-limite entre a representação e o real. Temos a mentira contada por
Gillis a respeito do carro no início do filme; a revisora de roteiros que fala
mal do filme do autor sem saber que ele está presente; o produtor que recusou ...E
o vento levou, revelando uma atitude contrária ao que se espera dele.
Enfim, nada é exatamente o que parece ser...
Além disso, nesta sequência inicial, sugere-se a
crise do cinema, entre a livre expressão do autor e as exigências do mercado. O
produtor Sheldrake (Fred Clark) começa um devaneio a respeito das
possibilidades do filme sobre beisebol e, conforme se aprofunda nesta história
absurda, deita em um sofá, acomoda-se como quem sonha acordado (mesma posição
de Gillis, quando Norman representa suas “bobagens” de cinema mudo para ele) e
só é interrompido quando o mundo real (capitalista) viola da forma mais cruel
sua criação semionírica: Gillis lhe pede dinheiro emprestado.
A apresentação de Norma Desmond também segue por este
caminho. O plano em que atriz conhece o narrador se sustenta em um zoom
inútil, tentando superar o obstáculo[2]
de uma veneziana que impede a conexão entre o externo e interno, o que, mais
uma vez, termina com Norma confundindo Joe Gillis com outra pessoa. Mais uma
sacada genial: a única dimensão da figura de Norma que apreendemos com clareza
neste momento é a sua voz. A voz que, como ela revela minutos a seguir, matou o
cinema. Neste universo de aparências flutuantes, somente a ingênua Betty tenta
separar o terreno da verdade e da mentira com clareza, mas quando deve julgar a
ficção de Gillis, o faz pelo seu grau de sinceridade, escolhendo o único trecho
biográfico de sua história para ser trabalhado.
Interessante também como o filme usa dos recursos
sonoros para interromper ou torturar a protagonista. A cena mais emblemática é
justamente aquela em que ela interpreta Chaplin e é brutalmente interrompida
por um telefone. É tragicômico também que DeMille ande a todo o momento com um
jovem que segura um microfone, mesmo quando não estão gravando, durante toda a
sequência nos estúdios da Paramount.
Falaste com propriedade sobre as categorias
metalinguísticas, não tenho mais a dizer. Termino com uma pergunta: uma vez mencionaste
a inverossimilhança em Kill Bill [nota do editor: esse texto será
publicado em breve no blog]. Assim, como Max sabia que Gillis iria a
casa, a ponto de arrumar a cama para recebê-lo? Seria ele tão onipresente?
Enigmas que só as obras-primas produzem!
PS 1: Buster Keaton não está totalmente mudo. Tem
duas falas durante o pôquer e elas são iguais: “Eu passo”. Como se recusasse a jogar
este “jogo” novamente.
PS 2: agradeço-te por rever este filme. A fantasia de
Norma, plasmada num espaço cheio de fotografias suas, é uma imagem perfeita de
uma das definições de Luís Costa Lima, quando este se refere à ficção do
próprio eu, na qual nada escapa à alçada do individual e, por isso, está fadada
ao fracasso, pois não se relaciona com o imaginário de outros seres humanos. É
lógico que pensei em exemplos literários (a começar por Quixote), mas esta é
também uma possibilidade intrigante.
[1]
Recomenda-se ler, primeiro, o texto abaixo deste.
[2]
Outra cena em que aparece um obstáculo que impede um desenvolvimento maior da
interação é aquela em que Norma e Joe conversam francamente pela primeira vez,
com ela falando de sua história sobre Salomé: ambos estão separados por uma
mesa coberta de páginas e páginas de ficção histórica.
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