Hoje, 13 de setembro, se foi o velho Godard, aos 91 anos. Aqui, uma homenagem ao grande diretor franco-suíço, em um escrito de 2015. Não mudei nada no texto, mesmo que não concorde com uma ou outra coisa que esteja ali. Foi publicado originalmente no antigo blog que mantínhamos, o “Cinema em Prosa”, hoje desativado. O “Conversa de Cinema” continua, meio devagar, faz quase um ano de sua última postagem. Quem sabe em breve voltamos com mais críticas e comentários cinematográficos...
Mauro Nicola Póvoas
Este texto vai para o
Zé.
Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo de 9 ago. 2015 (domingo, p. 2), na crônica “Allen e
Godard”, diz que este último, “papa da chamada Nouvelle Vague, continua a fazer
filmes para si mesmo e para alguns fiéis. Ele sempre quis fazer pensar. Sempre
vejo. E durmo. Mas não deixo de ver. É uma experiência antropológica”. Interessante
constatar que a ironia de Juremir joga com o fato de a suposta falta de
linearidade dos últimos filmes de Jean-Luc Godard ser um soporífero potente aos
espectadores incautos. No dia 12 ago. 2015 (quarta-feira, p. 2), Juremir volta rapidamente
ao assunto, para decretar: “Hoje, só três nomes ainda me fazem sair de casa:
Woody Allen, Quentin Tarantino e Jean-Luc Godard. (...) Detesto ver sempre o
mesmo velho filme de Godard”. De novo, no fio da navalha entre o elogio e a
crítica, o cronista deixa ambígua a sua posição sobre a obra do cineasta,
acostumado, aliás, ao “ame-o ou deixe-o”. Não parece, realmente, ser possível a
mediania em torno de Godard.
Esses dois textos de Juremir, mais o fato de eu
ter visto recentemente um filme de Godard, fizeram com que eu pensasse um pouco
sobre a minha relação com o diretor francês, para alguns gênio, para outros louco
e para uns simplesmente um chato.
(Não tenho muita paciência de baixar filmes para vê-los
em um notebook ou tablet. Acho, quixotescamente, que filmes precisam ser vistos pelo
menos numa tela de mais de 20 polegadas. Na verdade, para mim, filme é para ser
visto na telona, com gente respirando ao lado e rindo e incomodando e comendo
pipoca e resfolegando e fungando. Senão não é cinema. Podem dar o nome que
quiserem, mas ver filmes na mesma sala em que se come & dorme & se vê o
Silvio Santos & se joga videogame (enfim, onde se vive) é outra coisa.
Sendo assim, prefiro não ver um filme, qualquer filme, se as condições de
pressão, temperatura e legendas não forem as mínimas, restando-me somente ficar
na ignorância e não ver a maior parte da produção fílmica atual.)
Feito o pequeno circunlóquio, volto a Godard: o que
assisti dele, vi no cinema. Ver um filme no cinema, experiência epifânica,
sociológica e profundamente humana.
Um dia, acho que lá por 1997, passou Para sempre Mozart (1996) na Casa de
Cultura Mario Quintana (CCMQ). Confesso que o filme me causou certo embaraço e
confusão, mas gostei, afinal qualquer alusão a Mozart sempre me agrada (alô,
Rudinei!). Era o primeiro Godard que eu via, com sua narrativa descosida, e na
saída, ainda meio tonto, encontrei Zé Luís, porto-alegrense que era meu colega
no Mestrado em Teoria da Literatura na PUCRS. Ele era da “casa” (isto é, de
Porto Alegre), estava pois, eu achava, acostumado a ver filmes do Godard no
cinema, não um interiorano como eu que pegava no cinema só a rapa do tacho,
alguma coisa pelo videocassete e muuuuita coisa pela TV (quantas vezes fiquei
acordado para ver a Sessão Coruja?). Rapidamente troquei palavras com ele na
saída. A partir daí, tenho no Zé um amigo, com o qual há sempre assunto para a
conversa, desinteressada ou interessada. Um cara que vai ver Godard no cinema,
bom sujeito é. Ele deve ter pensado o mesmo de mim, tanto que até hoje a
amizade continua. Graças a Godard? Talvez.
Uma outra vez, acho que lá por 1998-1999, vi o anúncio
de um festival de Godard na CCMQ. Era época de muito estudo e pesquisa,
dissertação para terminar, trabalhos, disciplinas, sempre alguma coisa
pendente. O mundo acadêmico, doce por um lado, terrível por outro. Mas pensei:
é um festival do Godard! Quando que vou poder ver filmes dele assim, de novo? Lembremos
que era uma época pré-Internet, que baixar filmes e YouTube eram coisas de um
tempo muito distante, talvez para meus netos.
Bom, aí, nesse festival, consegui ver:
O desprezo
(1963) – Brigitte Bardot no auge. Godard e as suas belas atrizes... Gostei
muito, até porque filmes metalinguísticos que abordam o mundo do cinema sempre
me conquistam. Na verdade, depois pude constatar, O desprezo era uma narrativa até bem “normal”, levando em conta os
padrões godardianos.
Alphaville (1965)
– filme de detetive misturado com ficção científica. Estranho.
A chinesa
(1967) – adorei esse filme, embora a confusão estabelecida na minha cabeça. Em
tempos de FHC, pré-Lula, em que talvez ainda fizessem sentido reuniões para
discutir Mao, o filme causou um nó na minha cabeça esquerdista (hoje, ela ainda
é), com a presença certeira da ironia do diretor, sempre desconstruindo aquilo
que a princípio consideramos indiscutível.
Me lembro que nessa fase minha alma e meu coração estavam
quase todos encharcados nas lides acadêmicas, então talvez não tenha
aproveitado esses três títulos como poderia ou deveria. Queria rever todos, e
mais outros, na telona.
Depois, num ano que não sei mais precisar, li que a
Sala Redenção da UFRGS passaria Acossado
(1960) num dia qualquer, dento de alguma mostra. Bah, o primeiro longa do enfant terrible, com Seberg e Belmondo.
Tinha que ver isso. Arrumei minha vida de estudante de pós-graduação e lá me
fui. A cópia era ruim, mas a película, com seus chiados e riscos, marcou fundo,
com as inovações da gramática cinematográfica que o diretor trazia à época, com
a atitude de desbunde proposta pelas personagens, as quais circulavam pela atmosfera
libertária parisiense da década de 1960.
Passaram-se muitos anos, 2009, talvez; eu estava em Lisboa
para um evento e tinha duas tardes livres. Passei pela Cinemateca Portuguesa, para
ver a programação, pois sempre havia coisa boa na casa de cinema lisboeta. Qual
a minha surpresa: no dia seguinte passaria O
demônio das onze horas (1965), a tradução brasileira maluca para Pierrot le fou, com, de novo, Jean-Paul Belmondo.
Fui com certa ansiedade ver o filme. Uma quinta, ou terça-feira, não lembro, às
15h, quem estaria presente para ver Pedro,
o louco (título português)? Será que só eu pagaria ingresso para ver mais
um Godard da minha vida? Para minha secreta alegria, o cinema estava cheio, repleto
de portugueses, ou não, sequiosos para ver o filme – o discreto charme da
telona, esse obscuro objeto de desejo. Assim, para sempre, e intimamente,
respeito o público de cinema português. Podem me perguntar sobre o filme, que
responderei que pouco lembro dele, mas na hora, no momento, adorei, talvez seja
aquele que mais gostei do diretor. Coisas da recepção cinematográfica, coisas
de se ver um filme com sala cheia, ainda mais numa cinemateca.
Agosto de 2015. Godard estava distante de minha vida,
talvez nem me lembrasse dele. Primeiro filho, diversas atividades acadêmicas,
sempre tanta coisa para fazer, sempre na correria. Estávamos no Shopping
Pelotas para comprar qualquer coisa, depois almoçar. “Deixa eu pegar o folheto
com a programação”. Acostumado com o trash
hollywoodiano de sempre, quase não acreditei quando vi num canto da folha: “Adeus à linguagem 3D. Legendado. Todos
os dias. Sala 4”, com a seguinte sinopse: “Um homem e uma mulher vivem um relacionamento
marcado pela falta de comunicação, já que cada um fala uma língua diferente.
Então, o cachorro deles decide intervir”. Fiquei pasmo, não com o
deliciosamente tosco, incorreto e inverossímil resumo acima transcrito, mas com
o fato de estar passando o filme 3D do Godard ali. Pedi à Marina, pois achava
que o filme só ficaria uma semana em cartaz: “Liga para a tua aluna que fica de
babá do Ramiro nos fins de semana e vê se ela pode hoje, pois aí já compro os
ingressos agora mesmo” (o filme era de noite). Sim, a Melissa podia, e fui
comprar as entradas. A moça da bilheteria, quando falei que queria dois tíquetes
para o Adeus à linguagem, me comentou
que, a pedido da direção do cinema, tinha que avisar que o filme era
“independente”, ou seja, o som e a imagem apresentavam uma qualidade abaixo do
que se esperava. Ri interiormente com o aviso, pensando se a moça conhecia
Godard; se não conhecia, não era culpa dela, afinal, quem conhece Godard?
Agora, aquilo para o qual ela alertou é exatamente o
grande ganho do filme, irritante na sua distorção de som e imagem. As cenas, em
2D e 3D, vão se acumulando e se atravancando no mesmo espaço, e o espectador vai
ficando impaciente e incomodado, não sabendo se é culpa da projeção, da cópia,
dos malditos óculos 3D. Não sei se é porque já uso óculos no dia a dia, mas não
gosto de filmes 3D, pois aí se fica com seis olhos! O 3D não acrescentou ainda
quase nada à arte cinematográfica, a não ser a histeria por parte dos diretores
em jogar coisas em nossa direção – a exceção à regra é Pina, de Wim Wenders. Gravidade,
As aventuras de Pi e A invenção de Hugo Cabret sobreviveriam
muito bem sem o 3D a eles impingido, embora existam nesses filmes algumas soluções
interessantes e belas imagens a partir do uso da tridimensionalidade.
Adeus à
linguagem (2014) inova ao investir em ser assumidamente um antifilme, que causa
estranhamento e desconforto ao espectador, ao fazer do 3D elemento disfórico e
distópico, e não a salvação anunciada de uma arte, a sétima, ameaçada pela
pirataria e pela insegurança das ruas. O seu roteiro às avessas ajuda a mostrar
a incongruência de se contar histórias num mundo cada vez mais violento e sem
espaço para o diálogo. A projeção desfocada dá adeus à linguagem
cinematográfica, ou melhor, a todas as linguagens que poderiam contar as histórias
ainda passíveis de serem narradas, pois já não há mais línguas, símbolos,
escritas para tanto, até porque o nível de incomunicabilidade das pessoas,
alerta o filme, no limite, levará a humanidade à imobilidade e à passividade. O
cachorro da ficção (na verdade, o cão de estimação de Godard), como a Baleia em
Vidas secas, parece o ser vivo mais
atento a tudo à sua volta.
Que me recorde, ninguém saiu do cinema pelo meio, e
nem havia tão pouca gente assim na sala, isso já é um ganho num filme tão fora
do “esquema”. Deveriam ser aqueles fiéis citados por Juremir, eu incluído. E há
mais alguns por aí, pois o filme ficou mais uma inacreditável semana em cartaz,
em meio a Pixels e Missões impossíveis. Do que será a “culpa”
por tanto “sucesso”? Do 3D, com seu apelo comercial, que na verdade é uma
jogada do mestre francês, uma verdadeira “pegadinha” para cima dos desavisados;
da temática que envolve cachorro, sempre um animal com um chamativo forte junto
ao público; do chamariz da nudez; do fato de ser um filme pequeno (1h10), sem
perigo de cansar, portanto?
Bons tempos, em que se precisava sair para a rua para
ter acesso a determinadas aspectos culturais. Espera aí, será que são bons
tempos, ou maus tempos? Atualmente, tem-se tudo a um clique no mouse ou a um toque na tela. Para mim, isso
é muito bom, isso é muito ruim.
E hoje já não moro mais em Porto Alegre: lá ainda
passa Godard em festivais que duravam duas ou três semanas? E na velha capital
portuguesa, será que as tardes ensolaradas são preenchidas por aposentados e
estudantes assistindo a um Godard do século passado?
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