Em 28
de julho de 2016, dei publicidade em nosso antigo blog, o Cinema em Prosa,
a esse pequeno texto, até então inédito, e que escrevi depois de assistir a O vento nos levará no cinema, há alguns
anos. A publicação, naquele momento, se deu por causa da morte do diretor iraniano
Abbas Kiarostami, ocorrida em 4 de julho daquele ano. Agora, por causa do Roberto Medina, que ontem fez um comentário sobre
Kiarostami no Facebook, me lembrei do artigo e a ele voltei. Resolvi, então, neste dia bissexto, republicá-lo, agora
no Conversa de Cinema.
Mauro Nicola Póvoas
Lá pelas tantas, em O vento nos levará (Bad ma ra khahad bord, 1999, direção de Abbas Kiarostami), o personagem que vem de fora, aquele que é civilizado, que possui telefone celular e carro, reclama que se sente ocioso, já que a missão para a qual está destinado – filmar um ritual típico da vila de Siah Dareh, que se desencadeia quando alguém morre – fica impossibilitada de se concretizar, já que a pessoa que está doente, em vias de falecer, não quer perecer. Na verdade, o Engenheiro (único personagem não nomeado no filme; todos os outros são chamados pelos seus nomes “reais”, o que ajuda a borrar as fronteiras entre ficção e documentário) sente-se deslocado naquele local, em que todos têm as suas tarefas rigidamente marcadas, e parecem destinadas a cumpri-las ad infinitum: há aquele que abre o buraco e aquela que extrai o leite da vaca; há a que faz o pão e o que estuda para os infindos exames; há aquela que engravida e dá à luz em ritmo quase industrial; há o que trabalha com o ensino e o que mexe com a terra.
Não
por acaso, são todas tarefas ligadas à vida ou àquilo que carrega consigo
símbolos essenciais, como a terra, a natureza e o alimento, ou ainda àquilo que
supostamente permite o vislumbre de um futuro melhor, por meio da educação: ou
seja, signos positivos. O personagem principal, por sua vez, caracteriza-se por
um viés negativo, pela ranzinzice e maldade que sutilmente (aliás, no filme,
tudo é sutil) marcam suas atitudes, como quando vira a tartaruga com o casco
para baixo ou no momento em que é grosseiro com o menino que serve de cicerone
pelos caminhos da vila iraniana. No início, para o mesmo menino, o homem parece
já tentar justificar seu comportamento que aflorará posteriormente,
exemplificando que, como as máquinas, os homens podem “pifar” a qualquer
momento, o que pode causar injustiça e incompreensão.
O
deslocamento de lugar, forçado ou não, no entanto, sempre acarreta transformações
no indivíduo. Aqui, a viagem faz com que o Engenheiro passe a enxergar a vida
pela lente da vida, e não pela da morte, pois o que o trio de personagens –
embora dois deles nunca apareçam – vai buscar na longínqua localidade, senão um
ritual de morte? O release de
divulgação já aponta: “A vida insiste em vencer neste filme que ganhou a Prêmio
do Júri do festival de Veneza/99”: a vida está lá, explodindo em todos os
cantos, mostrada aos espectadores parcimoniosamente pela câmera – as cenas dos
cachorros brincando e correndo; a idosa, motivo da ida dos “estrangeiros” à
vila, que teima em não morrer, contra todas as previsões; o homem que, cavando
um buraco, milagrosamente não morre depois de um soterramento; a presença do
médico, que resume a esperança.
Aos
poucos, esses sinais de vida vão se entranhando no homem que, a princípio, concentra
a sua atenção apenas em atender ao telefone celular que toca incessantemente,
cena-chave que se repete quatro ou cinco vezes ao longo do filme. Opera-se,
desta maneira, uma metamorfose, com a presença de elementos vitais justapondo-se
ao impulso da morte que move o filme em seu início. Assim, o personagem
principal encontrará uma espécie de redenção, seja quando avisa a tempo aos
colegas do cavador de buracos do soterramento, seja quando pede ao médico que
visite a velha que está prestes a falecer.
Os
passeios na garupa do médico, aliás, complementam esse percurso de mudança. O
Engenheiro transmuta-se, do motorista da caminhonete que se desloca de cima
para baixo sem notar a paisagem à volta, em passageiro; assim postado, em posição
secundária, pode melhor observar a região. A beleza da natureza do lugar é já
referida no início do filme e não é à toa que o cartaz da película traz como
imagem-símbolo os dois personagens na moto, em sintonia com a imensidão da
paisagem.
Em suma, o Engenheiro transforma-se, do “abutre”
que fica à espreita da morte para poder satisfazer o mundo “civilizado” – esperando
ansiosamente para poder se deliciar com os rituais extravagantes e plásticos da
população interiorana –, em observador que delicadamente passa a interferir na
vida dos nativos: as várias caronas, a indicação para que o médico vá ver a idosa
doente, a preocupação com o bebê vizinho que chora, a “cola” ao menino.
A
ociosidade, aquela referida inicialmente, parece estar ligada à negatividade, à
morte, mas, na verdade, é só o nome dado pelo Engenheiro a uma falta de
percepção de como se dá a rotina no lugar, em que tudo é mais lento, mais
calmo; as coisas, porém, estão ocorrendo à sua volta, e ao natural ele começa a
se integrar na comunidade e a ajudá-la.
O vento nos levará
mostra que uma vida aparentemente sem destino e sem sentido, conduzida de forma
errônea, pode recriar-se a partir de situações e tramas que surgem e se
constroem, numa constante redescoberta de novas trilhas e caminhos. Resumindo, é
um filme sobre a expectativa de mudança que todos trazem consigo, algo, enfim,
próprio aos seres humanos.
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