Mauro Nicola Póvoas
Em Relatos selvagens (Relatos salvajes, 2014), vê-se mais uma vez a qualidade técnica e estética que o cinema argentino alcançou. A partir da produção surgida de 2000 para cá, pode-se falar de um “Novo Cinema Argentino”, que tem na figura onipresente de Ricardo Darín a sua pedra de toque – até um Oscar os hermanos ganharam nesse período, com O segredo dos seus olhos em 2010 (Darín é o ator principal, óbvio). Da Argentina, parece emanar um frescor temático que alcança a subjetividade de cunho filosófico-existencial que faz todo o grande Cinema (você sabe o que estou falando – Fellini, Bergman, Scola, Kubrick, Lynch, Allen etc.), não o simulacro que inunda os shoppings toda a semana. Dito isso, queria fazer uns comentários sobre os seis relatos selvagens apresentados por Damián Szifrón.
Nesse conjunto sêxtuplo de histórias, observa-se que
não há nenhuma relação aparente entre os personagens, mas a unidade temática do
filme é garantida pela recorrência, nos enredos, por assuntos que giram em torno
da vingança, da ira, do desajuste. Essa unidade temática é o que faz com que o filme
não tenha os altos e baixos tão comuns nos filmes de episódios – a película é
excitante e mantém uma espantosa regularidade, muito também devido à atuação
dos atores, ao roteiro burilado e à direção segura. É também de se destacar que
em nenhum dos episódios aparecem armas, que muitas vezes simplificariam e
banalizariam o enredo, levando em conta o tipo de história desenvolvida. Se o
filme fosse norte-americano, a presença de revólveres seria uma constância,
dentro do culto às armas de fogo que os Estados Unidos empreendem mundo afora.
Na verdade, pode-se dizer que talvez seja a vingança (ou a sua faceta mais atenuada, o revide) o principal componente do cardápio, já que ela está presente em todos os seis segmentos:
1) “Pasternak” (avião); 2) “As ratazanas” (restaurante); 3) “O mais forte” (estrada);
4) “Bombita” (engenheiro); 5) “A proposta” (caseiro) (neste, a vingança está atenuada,
embora se concretize ao final); e 6) “Até que a morte nos separe” (casamento).
Sentimento universal e atemporal, a vingança caracteriza-se pela gana do ser
humano de cobrar com juros humilhações sofridas por si ou por alguém próximo,
sendo expressa constantemente na literatura e no cinema. Seja dito de passagem:
quando penso em vingança, sempre me vem à mente “O barril de Amontillado”, de
Edgar Allan Poe, que retrata um plano vingativo planejado cerebralmente e executado
com precisão e perícia, pois que nunca será descoberto; neste sentido, o conto
de Poe é a antítese das pequenas histórias da produção argentina, em que pouco é
planejado com antecedência (exceção são os episódios “Pasternak” e “Bombita”),
pois os instintos afloram sem quase nenhuma mediação intelectual.
Nos episódios supracitados, nota-se também a força da
máquina, como no avião do episódio 1, e nos carros presentes em 3, 4 e 5; em
especial nesses três últimos episódios, o automóvel constitui-se como personagem,
que determina destinos, mapeia desilusões e serve de válvula de escape de uma
vida robotizada e limitada. Um dos itens essenciais da sociedade de consumo, o
uso do carro no filme descortina aspectos negativos dos veículos automotores:
poluente, agressivo e antissocial, ocupa o espaço do humano nas cidades, sufocando,
agredindo e matando, tornando a indiferença a regra geral.
Se o carro é um elemento importante para a
compreensão do filme, o sexto e último episódio desmascara e ridiculariza outra
instituição-símbolo da burguesia: o casamento, demonstração ritualizada de
poder e riqueza das classes média e alta. A cerimônia de casamento como a alegoria
da dissolução do mundo das aparências burguesas já foi tratada no cinema por
Bergman, Altman e Vinterberg, por exemplo, mas aqui surge com rara e renovada maestria.
A escalada vertiginosa de descobertas, xingamentos e humilhações entre noivo e
noiva leva a uma redenção catártica, em meio a esperma, sangue, suor e
lágrimas. É, na minha opinião, o melhor episódio do filme, juntamente com o
inacreditável episódio 3, em que os dois homens protagonistas ficam reduzidos à
lei do mais forte. Isolados geograficamente, perdidos em uma estrada deserta, a
situação metaforiza a ausência de civilização e carinho da sociedade atual,
pois os atos dos dois motoristas sucessivamente trazem consigo preconceito, rancor e
raiva. Nesse episódio, verdadeira montanha-russa de emoções e agressões, não há
como não lembrar o espírito de certas séries animadas clássicas, como Tom e Jerry
e Papa-Léguas.
Aliás, as convenções burguesas, uma a uma, são
atacadas no filme: no episódio 1, bullying
e relações familiares, profissionais e afetivas se entrecruzam de forma ao
mesmo tempo risível e desastrada; no 2, o representante indigesto da mistura de
política e agiotagem termina da pior maneira possível; no 4, “Bombita” tem o
seu “dia de fúria” (sim, a referência aqui é o filme homônimo de 1993 dirigido
por Joel Schumacher e protagonizado por Michael Douglas), contra a burocracia
inepta que quer controlar o cidadão, que quanto mais pacificado e humilhado
melhor; ou no 5, em que nenhum dos estratos da sociedade demonstra possuir
resquícios de pudor – patrões, empregados, profissionais liberais (advogados) e
funcionários públicos (delegados) igualam-se, todos, na corrupção, na impunidade, na falta de
moralidade e no desejo de enriquecimento rápido e fácil. Impossível não lembrar do disco Cabeça dinossauro (1986), dos Titãs, em que, igualmente, se observa o ataque a todas essas instituições – polícia, família, igreja, burocracia estatal etc.
No clássico álbum em quadrinhos O homem é bom? (Porto Alegre: L&PM, 1984), a pergunta do título
tem uma resposta límpida e cristalina, ao longo de suas histórias: não, o homem
não é bom, e o autor Moebius brinca com o sentido duplo da palavra – se o
caráter do homem é ruim, também o gosto da carne humana não é aprazível ao
paladar, conforme uma das histórias mostra. Em Relatos selvagens, a
resposta, a cada momento, também vai se delineando no mesmo sentido daquele
engendrado pelo desenhista francês: o homem não é bom, pois rompe o delicado e
antinatural “contrato social” rousseauniano a todo momento, movido pela angústia, pela falta
de ética, pela morbidez, pela violência. Inverossímil e absurdo por vezes (sem estragar a
fluência da obra) na sua tragicomicidade, o filme faz com que em meio às cenas
mais selvagens o riso saia incrédulo, resultado da ironia com que as situações são tratadas. A catarse, que vai se moldando ao longo
de todo filme, atinge o seu auge no último episódio, com a grande cena final,
que não pode ser contada para não estragar o prazer da recepção, para aquele
que ainda não viu a película.
Ao fim, restamos completamente exauridos da violência
que se apresenta em todo o filme, estupefatos com o fato de sermos da mesma
raça das figuras ficcionais que desfilam na tela – “sim, eu poderia ter feito
aquilo”, é um pensamento que vem à mente. Por enquanto não fomos nós, e a
função higienizadora da arte vem à tona, mas na próxima esquina quem sabe eu ou
você não caiamos na mais pura selvageria com alguém que cruze conosco. Será que
o sucesso de público do filme na época do lançamento não se explica em parte pelo fato de ele desnudar
o desejo do ser humano de, em certos momentos, se livrar completamente das
amarras morais, físicas, comportamentais, para, livre finalmente do superego (conforme estruturado por Freud), tornar-se
mais insuportável e mesquinho do que já é? Chegando então a essa situação, o único
caminho é a autodestruição, fim talvez inexorável da civilização humana.
E é sobre isso que Relatos selvagens nos dá notícia.
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