27 outubro, 2021

Mais algumas notas sobre "Crepúsculo dos deuses"


Daniel Baz dos Santos[1]

 



Levado pelos teus comentários, Mauro, assisti de novo ao impressionante Crepúsculo dos deuses. Nas linhas seguintes, tentarei esboçar algumas impressões que tive, lamentando de antemão o pouco tempo disponível para fruir uma obra tão cheia de possibilidades.

A genialidade desta obra começa nos seus créditos iniciais. Vemos o nome da fatídica rua no cordão da calçada, numa primeira imagem-síntese de uma das temáticas centrais da obra, ou seja, o glamour associado à decadência. Seguindo este lampejo brilhante, somos forçados a ler os nomes dos atores escritos na calçada enquanto a câmera se movimenta até o espaço da ação. Aqui se tem uma analogia muito bem construída referente à oscilante verticalidade do sucesso. Familiarizamo-nos já nos créditos com a ideia de que os “astros” podem facilmente descer ao mais baixo do mundo. E pensar que Wilder imaginara um começo diferente, em um necrotério, onde os mortos contariam a situação na qual morreram, dando a deixa para Joe Gillis, o personagem de William Holden – introdução abandonada devido às gargalhadas da plateia-teste.

Há durante todo o filme uma constante reflexão entre o verdadeiro e o falso, entre a verdade e a mentira, tendo como eixo a temática da representação. Tudo começa com o contrassenso de Gillis que, estando morto, promete que irá relatar “The whole truth” e lança uma piscadela ao público do cinema, ao dizer que, se eles buscam a verdade, vieram ao lugar certo.

O cinema aqui é literalmente uma projeção dos desejos de todos, algo que já foi dito por Méliès, Godard e, há alguns poucos anos, por Slavoj Zizek, no seu O guia pervertido do cinema. O cinema é perverso, pois além de nos obrigar ao desejo, sugere que seu espaço natural é o das representações, nos forçando a desejar o que elas figuram. Logo no início do filme, ironicamente, o espaço da representação se associa ao espaço da mentira e o roteiro parece que lida o tempo inteiro com esta ambivalência, no terreno-limite entre a representação e o real. Temos a mentira contada por Gillis a respeito do carro no início do filme; a revisora de roteiros que fala mal do filme do autor sem saber que ele está presente; o produtor que recusou ...E o vento levou, revelando uma atitude contrária ao que se espera dele. Enfim, nada é exatamente o que parece ser...

Além disso, nesta sequência inicial, sugere-se a crise do cinema, entre a livre expressão do autor e as exigências do mercado. O produtor Sheldrake (Fred Clark) começa um devaneio a respeito das possibilidades do filme sobre beisebol e, conforme se aprofunda nesta história absurda, deita em um sofá, acomoda-se como quem sonha acordado (mesma posição de Gillis, quando Norman representa suas “bobagens” de cinema mudo para ele) e só é interrompido quando o mundo real (capitalista) viola da forma mais cruel sua criação semionírica: Gillis lhe pede dinheiro emprestado.

A apresentação de Norma Desmond também segue por este caminho. O plano em que atriz conhece o narrador se sustenta em um zoom inútil, tentando superar o obstáculo[2] de uma veneziana que impede a conexão entre o externo e interno, o que, mais uma vez, termina com Norma confundindo Joe Gillis com outra pessoa. Mais uma sacada genial: a única dimensão da figura de Norma que apreendemos com clareza neste momento é a sua voz. A voz que, como ela revela minutos a seguir, matou o cinema. Neste universo de aparências flutuantes, somente a ingênua Betty tenta separar o terreno da verdade e da mentira com clareza, mas quando deve julgar a ficção de Gillis, o faz pelo seu grau de sinceridade, escolhendo o único trecho biográfico de sua história para ser trabalhado.

Interessante também como o filme usa dos recursos sonoros para interromper ou torturar a protagonista. A cena mais emblemática é justamente aquela em que ela interpreta Chaplin e é brutalmente interrompida por um telefone. É tragicômico também que DeMille ande a todo o momento com um jovem que segura um microfone, mesmo quando não estão gravando, durante toda a sequência nos estúdios da Paramount.

Falaste com propriedade sobre as categorias metalinguísticas, não tenho mais a dizer. Termino com uma pergunta: uma vez mencionaste a inverossimilhança em Kill Bill [nota do editor: esse texto será publicado em breve no blog]. Assim, como Max sabia que Gillis iria a casa, a ponto de arrumar a cama para recebê-lo? Seria ele tão onipresente? Enigmas que só as obras-primas produzem!

PS 1: Buster Keaton não está totalmente mudo. Tem duas falas durante o pôquer e elas são iguais: “Eu passo”. Como se recusasse a jogar este “jogo” novamente.

PS 2: agradeço-te por rever este filme. A fantasia de Norma, plasmada num espaço cheio de fotografias suas, é uma imagem perfeita de uma das definições de Luís Costa Lima, quando este se refere à ficção do próprio eu, na qual nada escapa à alçada do individual e, por isso, está fadada ao fracasso, pois não se relaciona com o imaginário de outros seres humanos. É lógico que pensei em exemplos literários (a começar por Quixote), mas esta é também uma possibilidade intrigante.



[1] Recomenda-se ler, primeiro, o texto abaixo deste.

[2] Outra cena em que aparece um obstáculo que impede um desenvolvimento maior da interação é aquela em que Norma e Joe conversam francamente pela primeira vez, com ela falando de sua história sobre Salomé: ambos estão separados por uma mesa coberta de páginas e páginas de ficção histórica.

Dez comentários sobre "Crepúsculo dos deuses"

 

Mauro Nicola Póvoas

 



Outro dia, no Telecine Cult, revi Crepúsculo dos deuses (Sunset blvd., 1950), de Billy Wilder, grande diretor. Já tinha visto esse filme há muito, muito tempo, e me lembro que na época gostei. Agora, pensei: está na hora de rever a película. É um grande filme, entra folgado em uma lista particular que está eternamente em construção, com os meus 25 filmes de todos os tempos (desisti de um lista de somente 10). A seguir, alguns dez pequenos comentários sobre o filme, que queria dividir com os interlocutores:

1) Além de tudo que apontarei a seguir, o filme me marca por um dado sentimental e pessoal. Meu pai, Aldo Póvoas, foi um fanático por cinema, bombardeado pelo star system hollywoodiano das décadas de 1940 e 1950. Ainda guardamos, meus irmãos e eu, uma coleção de mais de 130 fotografias enviadas para ele pelas maiores atrizes dos Estados Unidos, a maioria assinadas. Uma cena em especial me emocionou no filme: Norma Desmond (Gloria Swanson) assinando, ela mesma, as fotos para enviar aos fãs. Depois sabemos que não há fãs, era tudo armação do mordomo-diretor-marido. Ainda neste diapasão, outro dia vi um episódio de Além da imaginação (Twilight zone), de 1959, que homenageia Crepúsculo dos deuses. E qual a atriz principal do episódio? Ida Lupino, a atriz preferida do meu pai, que emula Gloria Swanson na série. Tudo se conecta!

2) Filmes com caráter metalinguístico são para mim invencíveis; mesmo os fracos, como o Nine, com Daniel Day-Lewis, merecem ser vistos. Lembro de Quero ser John Malkovich, Adaptação e Sinédoque, Nova York, de Spike Jonze/Charlie Kaufman; Noite americana, de Truffaut; 8 ½, de Fellini; Cidade dos sonhos, de Lynch; Era uma vez em... Hollywood, de Tarantino etc. A visita de Norma ao set da Paramount comandando por Cecil B. DeMille está entre as grandes cenas do cinema americano. O filme consegue equilibrar de forma genial uma das mais lindas homenagens ao cinema, enquanto arte e entretenimento, ao mesmo tempo em que, das entranhas da indústria, traz uma das mais impiedosas críticas a essa mesma indústria.

3) A presença – claro que muda – de Buster Keaton jogando cartas é outro toque genial. A homenagem ao cinema sem som e ao cinema em geral está em tudo, como em Norma Desmond, lá pelas tantas, imitando Charlie Chaplin.

4) Tenho uma velha tese: os filmes clássicos, para atingirem esse status, necessitam de grandes finais. Que final o deste filme, entre os maiores do cinema, com Norma Desmond descendo as escadas, já sem razão – ou está ela somente fazendo a sua última grande última? E o começo não fica atrás, com a câmera fixada no asfalto da Sunset Boulevard, até que o espectador chegue ao corpo afogado na piscina. A partir daqui, enumero dois itens intertextuais, o 5 e o 6.

5) Impossível não lembrar do machadiano Memórias póstumas de Brás Cubas, já que todo filme é narrado por um morto, o que possibilita um olhar acurado e distanciado sobre aquela máquina de moer carne que é Hollywood.

6) Como não lembrar também de Cidade dos sonhos (Mulholland Dr.), filme de David Lynch que também traz um olhar carinhoso e/ou impiedoso sobre o cinema hollywoodiano, e que igualmente tem uma rua de Los Angeles no título?

7) Tecnicamente, o filme é perfeito: a fotografia em preto-e-branco, o roteiro, a música, os atores, a direção do sempre competente Billy Wilder. É o auge de uma indústria, a do cinema.

8) Até por conta do que comentei acima, não é de se estranhar que o filme tenha ganhado três Oscars: direção de arte, música e roteiro. Concorreu a filme, diretor, atriz, ator, atriz e ator coadjuvantes. Fiquei pensando: como é que não ganhou melhor filme?! Aí fui ver quem ganhou em 1951: A malvada – calei-me. Era uma época de deuses no mundo da tela. Por exemplo: o Oscar de 1949 foi para o Hamlet de Laurence Olivier.

9) O mordomo Max, vivido grandemente por Erich von Stroheim, é um dos mais importantes personagens da trama, pois na verdade ele que é o diretor da casa e da vida de Norma (na verdade, não será o diretor mesmo do filme?), e até o fim ele faz essa função. O filme é mesmo para cinéfilos (tanto que os personagens são roteiristas, atores, diretores), com várias alusões cinematográficas, como as já aludidas de Chaplin, Keaton e DeMille.

10) Nancy Olson, a roteirista ambiciosa Betty Schaefer, que é a namoradinha do cínico e folgazão Joe Gillis (William Holden), está viva ainda, em outubro de 2021, com 93 anos (nasceu em 1928, mesmo ano, aliás, do meu pai – estou dizendo, tudo se conecta...). No filme, ela faz uma menina cheia de sonhos, que tem exatamente 22 anos (idade da atriz em 1950), o que reforça uma atmosfera ambígua do filme: por um lado, traz o onírico, matéria-prima do cinema, mas também, por outro, reforça uma verossimilhança “estranha”, como se todos estivessem fazendo os papéis que protagonizam na realidade: DeMille, o diretor; Swanson e Keaton, os decadentes; Olson, a que está começando a carreira etc.


13 junho, 2021

Morrer e renascer em uma alvorada crepuscular

 

Mauro Nicola Póvoas



Estreou há poucos dias, nos cinemas e em streaming, Alvorada, documentário de Anna Muylaert e Lô Politi que pretende perscrutar, ao mesmo tempo, os recônditos do Palácio da Alvorada e a interioridade da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016). O crítico José Geraldo Couto chama a atenção, em seu blog de cinema hospedado no Instituto Moreira Salles, para o fato de o filme operar sob o signo do crepúsculo, embora o título envergue a palavra “Alvorada”. Ótimo paradoxo, que explica muita coisa.

A película compõe-se de cenas, muitas vezes tensas, que giram em torno de reuniões e conversas com a presença de políticos, advogados e assessores, sempre nas dependências da morada oficial dos presidentes do Brasil, entre 17 de abril (a votação na Câmara do impeachment, com placar de 367 votos a favor da destituição e 137 votos contra) e 31 de agosto de 2016 (a votação no Senado, com 61 votos a favor e 20 contra). Neste período de quatro meses e meio, Dilma encastelou-se no Palácio, articulando a busca de um desfecho favorável à sua permanência no cargo, o que, como se sabe, não aconteceu. Eleita com 54,5 milhões de votos, o golpe se consumou no último dia de agosto, mês aziago para presidentes da República brasileira; por exemplo, foi em agosto que Getúlio se suicidou, em 1954, e que Jânio renunciou, em 1961.

E falo golpe conscientemente, pois resta claro, cinco anos passados, que houve um conluio, de caráter misógino, entre elite, mercado, judiciário, mídia e políticos de centro-direita, com a intenção de abrir caminho para que, em 2018, um nome do PSDB triunfalmente ganhasse a eleição, a fim de, depois dos treze anos de PT no poder, ser possível reimplementar a agenda neoliberal de desmonte do Estado brasileiro. E a desculpa perfeita para o impedimento foi a das “pedaladas fiscais”, manobra contábil corriqueira entre os governantes, nunca admitida, antes, como crime de responsabilidade. O plano fez água pelo surgimento do fator Bolsonaro, que confundiu tudo, e entre o PT de novo e o “mito” (de pés de barro), o grupo aquele (elite, mercado etc.), como estava no Inferno, abraçou o Diabo.

O filme tem dois tipos de imagens, aquelas captadas com a naturalidade e a espontaneidade possíveis na situação, e a entrevista com a presidente. Essa conversa, vista por partes ao longo do filme, traz o melhor de Dilma, pois é quando ela se expõe um pouco mais, sem a crispação observada nas reuniões ou nas entrevistas dadas a órgãos de imprensa.

No todo, o que vem à tona é uma mulher “dura na queda”, que diz nunca se desesperar, embora estude as pessoas para ver o que as levam a cair, até para poder aprender com essa situação. A sensação geral é de uma pessoa solitária, de poucos sorrisos e amigos, sem jogo de cintura para transitar por um mundo tão masculino como o da política brasileira. A falta dessa capacidade de diálogo, junto com o incômodo dos homens por uma presença feminina em cargo tão prestigiado, foi um ingrediente fatal para o desencadeamento do processo de afastamento.

Estranhamente, como o filme demorou para vir a público – cinco anos depois dos fatos relatados –, o que ali está registrado parece já distante, tanto que nos lembramos que, naquele momento, a nossa preocupação maior era o “Fora, Temer!”. Incrível, mas o documentário lembra que se era ruim com o vice alçado ao poder, o ambiente ficou irrespirável com o sucessor.

E como o lançamento se dá agora, em plena vigência do mandato de Jair Bolsonaro, a comparação com o atual morador do Alvorada paira sobre toda a produção, até porque o começo do filme traz a voz do então deputado federal que, fantasmaticamente, ecoa em nossos ouvidos, com o detestável discurso proferido quando do seu voto pró-impeachment, em nome da família, de Deus, de Brilhante Ustra, a favor da tortura e tudo o mais. Uma falta de decoro, que não foi punida devidamente naquele momento, o que causaria o corte do mal pela raiz. Mas, paradoxalmente, mesmo com aquela tenebrosa fala (ou por causa dela?), ele foi eleito. Que país é este, afinal, em que as pessoas votaram em alguém racista, fascista, homofóbico, misógino, violento, agressivo, defensor de milícias? E para completar o cardápio, viria a se revelar, mais tarde, um genocida.

Assim, um aspecto impossível de passar despercebido é a comparação de Dilma Rousseff com Jair Bolsonaro. Nenhum dos dois é um campeão da retórica, pelo contrário, mas o estofo cultural das citações de Dilma, nas entrevistas, é interessante de ser anotado – Guimarães Rosa, John Milton, Hannah Arendt, Carlos Gardel. Se pensarmos em Jair, provavelmente ele nem saiba quem são os quatro citados, evidenciando assim que a boçalidade é o alicerce do governo federal.

Outro elemento que se sobressai é a solidão já comentada, pois nem a mãe (ainda viva na época), nem a filha de Dilma aparecem, marcando a posição da presidente de separar a vida pública da privada. Radicalmente diferente é a postura do atual mandatário, exemplo cabal do patrimonialismo que sempre marcou o Brasil, na mistura dos interesses familiares com as questões de Estado.

Por tudo isso, Alvorada dá um embrulho no estômago e uma melancolia, ao lembrar que ali começou todo esse despautério instaurado desde 31 de agosto de 2016, agudizado a partir de 1º de janeiro de 2019, com a ascensão do bolsonarismo. Dói ver a consumação de um processo injusto, que buscou por vias tortuosas o acesso ao poder, negado pelas urnas em quatro eleições consecutivas. O caminho foi o de romper a ordem democrática por uma via aparentemente legal, configurando a nova forma de dar golpes na América Latina, sem tanques nem derramamento de sangue, e respaldada pelas falácias do “ordenamento jurídico” e das “instituições que estão em pleno funcionamento” – como aliás se deu anos antes no Paraguai, na deposição-relâmpago do presidente Fernando Lugo, em 2012.

O filme circunscreve-se ao Palácio da Alvorada, diferente dos mais abrangentes O processo (2018, de Maria Augusta Ramos) e Democracia em vertigem (2019, de Petra Costa) que, junto com o filme de Anna Muylaert e Lô Politi, formam um tríptico de documentários sobre os últimos cinco anos da política brasileira. Não à toa, os três são dirigidos por mulheres, como se só o olhar feminino pudesse escrutinar e constatar toda a tristeza de ver a destruição moral, social, econômica, ambiental, cultural e educacional que se abateu sobre o país.

Aliás, sensibilidade feminina que Anna Muylaert já tinha demonstrado tão bem em Que horas ela volta? (2015), um dos melhores filmes brasileiros produzidos no século XXI. Comparado a Alvorada, o filme com Regina Casé resolve melhor, esteticamente falando, a demonstração das questões políticas que estão no cerne dos acontecimentos de 2016, ao desnudar com incrível lucidez os mecanismos da elite para inviabilizar a ascensão das classes socialmente mais frágeis nos governos Lula-Dilma (2003-2016)[1].

Em todo o caso, as cenas finais do documentário de Muylaert e Politi fazem pensar, pela beleza e pela simplicidade. Primeiro, a imagem do pássaro desnorteado que quer sair, mas não atina onde está a janela aberta (uma metáfora da gente, os brasileiros progressistas?); depois, a última tomada: um conjunto de empregadas, mulheres como as diretoras e a presidente, sentam-se na cadeira que era ocupada por Dilma e brincam por segundos de serem as todo-poderosas da nação. Mais mulheres, mais gente do povo, mais diversidade no poder, é isso que o filme parece dizer. Que bom: no encerramento, surge um rasgo de esperança no crepuscular Alvorada.



[1] Sobre esse filme, ler crítica postada no blog, mais abaixo.

"Que horas ela volta?" e o Brasil da era Bolsonaro


Mauro Nicola Póvoas[1]

 


Assisti a Que horas ela volta? (2015) quando do seu lançamento no cinema, e lembro que saí da sala de exibição muito satisfeito com o resultado final. Alguns anos depois, em 2018, revi o filme para discuti-lo em aula, no contexto da disciplina de Seminário de Cultura Brasileira, que ministro no curso de Letras/Português da FURG. A partir desse segundo contato, queria, aqui, tecer alguns comentários, em especial sobre a relação da obra com o panorama político brasileiro atual.

Uma primeira questão que me vem à tona é o fato de ele ser um “filme de mulheres” (mas não “para mulheres”). Sendo poucas as pessoas do gênero feminino que se destacam na direção no cinema mundial, Que horas ela volta? chama a atenção por ser dirigido, roteirizado e produzido por Anna Muylaert, sem falar no elenco, em que se destaca, em especial, Regina Casé, que está ótima. O roteiro é bem encadeado, as questões levantadas são desenvolvidas com destreza e delicadeza e, ao final, impossível não se emocionar com uma história que tinha elementos, se malconduzidos, para acabar em pieguice. Mas, pelo contrário, uma das grandes qualidades da película é o modo engenhoso como o filme envolve o espectador na trama, ao mesmo tempo sentimental e social, sem ser panfletária.

Resumindo em poucas palavras, o enredo trata da chegada a São Paulo de Jéssica (Camila Márdila), a “filha perdida” da empregada doméstica Val (Regina Casé), com quem ela não se comunicava há muitos anos, e que reaparece de surpresa; a reconciliação plena só será alcançada ao final, após muitos percalços e desentendimentos. Val, a princípio, parece não gostar muito dessa “aparição”, pois acomodada na sua vida de subalterna, não vê muito espaço para a menina, criada por parentes no Nordeste. O carinho e a atenção que não conseguiu dar à filha biológica, Val canalizou para o “filho de criação”, Fabinho (Michel Joelsas), que nunca recebeu o devido afeto dos pais verdadeiros. Val, sem uma maior consciência de classe, não nota que reproduz, na sua vida, a ama-de-leite, aquela que substituía o sinhô e a sinhá no papel da criação dos filhos. Ao final, quando se liberta daquela vida ilusória, mesmo que numa casa mais simples, enxerga um futuro digno e livre, com os “seus” de verdade: a filha e o neto, que ainda não conhece. Isto é, livra-se, em pleno século XXI, da estrutura consagrada por Gilberto Freyre, da casa-grande e da senzala, aqui sinônimos de, respectivamente, mansão e quarto de empregada.

Esse resgate é a grande chave epifânica do filme, até porque Que horas ela volta? apresenta vários momentos em que vêm à tona os recalques dos filhos com as suas mães: Jéssica/Val e Fabinho/Bárbara. O fato de Jéssica não chamar Val de mãe é o indício mais acentuado da relação interrompida das duas. Também a cena em que Fabinho prefere ser confortado por Val ao invés da própria mãe, quando sabe que não foi aprovado no vestibular, mostra muito da desarticulação do núcleo familiar dos ricos. Neste sentido, as frustrações de Val e Fabinho são superadas com a relação (quase edipiana, pode-se dizer) que ambos estabelecem, em que o fosso financeiro é compensado pelo carinho que nutrem entre si.

Jéssica é considerada uma cidadã de segunda classe, embora seja “descolada”: não é mais virgem, fuma maconha, sabe da importância do Edifício Copan, símbolo da arquitetura modernista paulistana, projetado por Oscar Niemeyer. Até por isso, parece mesmo de “nariz empinado” para a classe alta representada por Bárbara (Karine Teles), a patroa[2]. O fato de a menina querer ascender socialmente é o mote que faz a história girar. A sua chegada, como a do visitante interpretado por Terence Stamp, de Teorema (1968), de Pasolini, desestabiliza a ordem burguesa, fazendo despertar ódios e paixões na mansão localizada no bairro nobre do Morumbi. Desde a chegada da jovem, observa-se no filme um interessante jogo espacial, como se as personagens estivessem em uma guerra, com os territórios sendo conquistados ou perdidos após cruentas batalhas.

Desta maneira, Jéssica desloca-se espacialmente em três momentos na sua busca por uma vida melhor. A primeira conquista é não ficar no quartinho de empregada da mãe, mas conseguir dormir no quarto de hóspedes, pois ali poderia estudar em melhores condições.

A segunda é almoçar na mesa com o Dr. Carlos (o quadrinista Lourenço Mutarelli, uma grata surpresa), com o direito de se deliciar com um gostoso sorvete, para o desespero de Val, que nunca tinha desfrutado de tanta intimidade com os donos da casa. Aliás, descobre-se depois que o patrão, artista que abandonou a pintura, é quem sustenta o luxo da casa, pois recebeu vultosa herança do pai, não sendo Bárbara o arrimo da família, como parece à primeira vista, já que é dona de um emprego de sucesso. Carlos é o passaporte de Jéssica não só à mesa da família, mas também é quem possibilita que ela visite o Copan e o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), assim como permite que a menina tenha acesso à arte, ao mostrar os quadros assinados por ele. No decorrer da trama, depois de conhecer a menina, o antes anestesiado Carlos sente-se vivo de novo, sem saber se aquele encantamento por ela trata-se de afeto, amizade, amor ou paixão – um risível e patético pedido de casamento a Jéssica serve para confundir ainda mais os sentimentos já nublados que ele nutre.

O terceiro avanço espacial de Jéssica é tomar banho na piscina, a partir da intervenção dos jovens (Fabinho e seu amigo Caveira), aqueles que, ainda não cristalizados em suas posições, mais facilmente quebram os paradigmas impostos pelos adultos. É a gota d’água para Bárbara, que manda limpar a piscina, já que, segundo ela, foram vistos ratos ali, na metáfora nada sutil para obstruir o avanço de Jéssica sobre a propriedade privada, um dos bastiões das classes média e alta. A partir daí, a contraofensiva de Bárbara será cruel, primeiro com a retirada da menina do quarto de hóspedes, depois com a proibição de que ela circule nas peças da casa que se localizem além da cozinha.

Ao final, há um resultado de caráter mais definitivo, por parte de Jéssica: a aprovação no processo seletivo para cursar Arquitetura, na conceituada FAU. Improvável, tendo em conta a origem humilde, o desempenho positivo ganha ares de acinte quando se sabe, concomitantemente, que Fabinho, no mesmo concurso, não passou. Isso leva Bárbara à incredulidade e Val a finalmente quebrar as regras a ela impostas, entrando (finalmente!) na piscina, agora semivazia, simbolizando o esgotamento da configuração das pessoas que habitavam a mansão, pois o filho buscará no estrangeiro um jeito de esquecer o fracasso no vestibular, enquanto a empregada está prestes a pedir as contas, o que se concretiza logo a seguir. Outro signo que aponta para o desmoronamento daquele núcleo familiar (patrões e empregada) é quando Val quebra a bandeja que estava na família de Bárbara há várias gerações.

Os ataques e contra-ataques entre os núcleos “rico” e “pobre”, para ver quem ganha e quem perde os territórios disponíveis, caracterizam a vitalidade do conceito marxista de luta de classes, que ao contrário da afirmação de algumas vozes, continua firme e forte. O capitalismo, para sobreviver, precisa desse abismo socioeconômico entre as pessoas, pois a vitalidade do sistema necessita da exploração do mais pobre pelo mais rico. O estabelecimento da luta de classes, no Morumbi, molda a película, no momento em que o borramento da linha divisória entre a elite e os pobres desagrada à primeira, que fica incomodada de perder os seus privilégios e o seu poder. Uma cena trabalha de forma contundente esse rompimento de limites e a respectiva inversão de papéis: aquela em que Bárbara, na ausência de Val na cozinha, faz um suco para Jéssica.

Não à toa, ver Que horas ela volta?, depois de Jair Bolsonaro ter sido escolhido presidente do Brasil, dá ao filme uma característica interessante, a do entrelaçamento de realidade e ficção, ou de como a realidade complementa a ficção. A eleição de Bolsonaro dá uma dimensão ao filme que me escapara na primeira vez em que o vi, até porque a hipotética vitória do capitão, naquele momento, era vista tão somente como uma piada de mau-gosto. Atualmente, a situação política do Brasil é a continuação de algo esboçado no filme: a vingança dos poderosos contra a audácia daqueles que roubaram as vagas da FAU dos “filhinhos de papai”. Visto sob essa perspectiva, o filme ganha ainda mais densidade, pois a revolta e o desrespeito de Bárbara em relação aos pobres, aos nordestinos e aos que vêm de baixo, emulam exatamente esses sentimentos, nutridos por Bolsonaro e seus parceiros. Duas cenas mostram com clareza este desprezo: a reação da patroa às xícaras de café que ganha de presente de aniversário de Val e o desagrado de Bárbara com o perfume usado pela empregada, quando essa sai para um fim de semana fora da mansão.

Lembro aqui da pergunta expressa por Gayatri Chakravorty Spivak no título de seu famoso livro: Pode o subalterno falar?[3] Em geral, observa-se que as representações ficcionais dos oprimidos ainda são feitas pelos oriundos das classes confortáveis. Assim, cabe a pergunta: haverá um tempo em que uma Val ou uma Jéssica contará a sua própria história, com os efeitos estéticos semelhantes aos aqui apresentados? Spivak aponta que “a mulher subalterna continuará tão muda como sempre esteve” (p. 112), para ao final sentenciar: “O subalterno não pode falar” (p. 165). Sair da subalternidade é a vereda que abre a possibilidade da apropriação da fala, momento que chegará quando mais Jéssicas se formarem nas universidades públicas graças a cotas, financiamentos e fundos especiais. Cortar este caminho esconde o desejo de deixar o excluído, social e economicamente, sempre e eternamente à margem e calado.

Essa fratura na espinha dorsal da sociedade brasileira, em que pobres, negros, indígenas, gays, mulheres e nordestinos começaram a ter voz e vez, faz com que o filme possa ser visto como a síntese mais perfeita da Era Lula/Dilma no poder (2003-2016). Embora redutora, a associação não é errônea. Mas mais do que conformar o passado, o filme, que considero um dos melhores produtos da cinematografia brasileira na década de 2010, antecipa visionariamente o que foi se desenhando nos últimos anos e que se concretizou na vigência da desastrosa era bolsonarista, em que os conservadores passaram da estupefação e da aceitação, pela invasão dos espaços que lhe pareciam cativos, por herança ou por graça divina, para a raiva e a violência. Bárbara com certeza votou em Bolsonaro nos dois turnos, e hoje vê (será que já desesperançada?) os trágicos desdobramentos de um governo que pauta suas ações em torno do obscurantismo, do elogio das armas, da liberação dos agrotóxicos, do desmatamento, do sufocamento dos direitos da minoria, da pobreza intelectual, do antiacademicismo, do anti-indigenismo, da mentira e da pirotecnia cibernética. A intenção, clara, é que as coisas voltem àquele patamar considerado normal pela elite que mandou e manda no país: empregados nos seus quartinhos minúsculos e sem ventilação, vendo apenas uma nesga de céu, comendo na mesa da cozinha e estudando no máximo até o Ensino Médio, para que não ocupem os postos destinados aos filhos da burguesia. Assim, a ficção complementa-se na dura constatação de que, agora, na vida real, com a eleição de Jair Bolsonaro e o seu mandato efetivamente começado, os pobres ocuparão outra vez, na visão retrógrada, o seu “devido lugar”, perdendo direitos e vendo as oportunidades escassearem.

Diante de todo esse quadro, todo dia, desde 1º de janeiro de 2019, me faço uma pergunta: que horas ele sai?



[1] Texto publicado originalmente no jornal da Associação dos Professores da Universidade Federal do Rio Grande (APROFURG), Pó de Giz, n. 483, ago./set. 2019, p. 6-7.

[2] Um parêntese para abordar uma questão que me veio à mente partir de Benzinho, de Gustavo Pizzi. Neste filme, vencedor de vários prêmios no Festival de Gramado de 2018, Karine Teles é Irene, personagem envolvida em recorrentes problemas financeiros. Impossível não lembrar de Bárbara, pelo avesso, quando Irene vai levar o convite de formatura do Ensino Médio à sua ex-patroa, que a recebe com frieza. Por aquelas ironias do destino, Karine Teles interpreta competentemente os dois lados da moeda: o estrato dos ricos, no filme de 2015, e a classe baixa, em termos socioeconômicos, na película de 2018. Neste sentido, a cena de Benzinho aludida, pequena mas expressiva, parece estar ali inserida para dialogar exatamente com o papel que a atriz desempenhou no filme de três anos atrás.

[3] SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2012.

10 maio, 2021

Há algo de ressaca no Reino da Dinamarca: "Druk" e os professores que bebiam

Mauro Nicola Póvoas


 



Este final de abril e começo de maio de 2021 não está sendo fácil para quem vive no Brasil, pois as notícias ruins continuam a desnortear. Listá-las é complicado, pela quantidade.

A pandemia do coronavírus não diminui, pelo contrário, a curva de contágios deve crescer ao longo dos próximos meses, com a volta das aulas presenciais e as pessoas se aglomerando cada vez mais nas ruas.

Por mais incrível que pareça, Bolsonaro continua com certa popularidade – inclusive almoçando com empresárias e recebendo apoio em manifestações públicas, contra as indicações dos órgãos de saúde.

Paulo Guedes distribui falas incoerentes sobre “vírus chinês”, universidades federais e o fato de que as pessoas, no Brasil, não querem morrer, demonstrando a intenção de viverem até ficar bem velhinhas, o que sobrecarregaria a Previdência...

As privatizações continuam, inclusive de estatais estratégicas e fundamentais, como as companhias de água e esgoto, como a do Rio de Janeiro, enquanto a venda da Corsan, no Rio Grande do Sul, avança na Assembleia Legislativa.

E se em Santa Catarina uma creche foi invadida por um homem que matou duas professoras e três bebês, no Rio de Janeiro a polícia continua matando, como na recente operação para cumprir mandados de prisão que resultou em dezenas de cadáveres.

Como se pode constatar, viver neste Brasil de cores milicianas, negacionistas, fascistas e privatistas é realmente um exercício de paciência e sobrevivência. Neste sentido, o álcool pode ser um companheiro para mascarar tudo de ruim que vemos e sentimos, ainda mais em isolamento social, o que dificulta as coisas. Muitas vezes, a bebida ajuda a esquecer um pouco o mundo lá fora.

E a bebida alcóolica, seja qual for, tem algumas vantagens: é socialmente aceita, em geral é relativamente barata e abre as “portas da percepção”, isto é, fornece novas experiências sensórias, desinibe e facilita a interação. Tudo isso, claro, se tomada em doses adequadas e em determinadas ocasiões – embora seja prudente perguntar: há doses seguras para o consumo dessa droga? E o problema do alcoolismo, que acomete várias pessoas, não pode ser varrido para embaixo do tapete. Enfim, é bom beber, em busca do estado intermediário entre a sobriedade e a embriaguez, mas não se pode negar a seriedade do problema que o uso contínuo e desmedido da bebida pode causar.

Em Druk – Mais uma rodada (2020), de Thomas Vinterberg, que ganhou recentemente o Oscar de Melhor Filme Internacional (categoria que era nomeada antes de Melhor Filme Estrangeiro), a questão da bebida vem à tona. Gosto do dinamarquês Vinterberg, diretor de, entre outros, Festa de família e Querida Wendy, e companheiro de seu compatriota Lars Von Trier no manifesto Dogma 95, que pretendia trazer um olhar menos comercial sobre a produção cinematográfica. Ao ver o filme, salta aos olhos que, na Dinamarca, não são os problemas citados nos primeiros parágrafos que atordoam as personagens, pois no contexto socioeconômico quase perfeito dos países escandinavos são o vazio existencial e o sem sentido da vida que assustam as pessoas.

O filme causou certa polêmica, como se pode ver na crônica de Juremir Machado da Silva, no jornal Correio do Povo de 28 de abril de 2021, intitulada “Um porre”. Nela, o colunista expõe o seu espanto com o fato de o filme ter sido premiado pela Academia com o Oscar, já que faria uma apologia da bebida. Também em comentários na página pessoal no Facebook do professor e jornalista houve repercussão, como se pode ver em uma postagem sua, um dia antes da publicação impressa, em 27 de abril, às 18h14min: “Hoje fiquei sabendo que criticar a romantização do alcoolismo e do álcool como estratégia pedagógica (isso mesmo) pode ser chamado por alguns de moralismo. Então sou moralista. Álcool todos os dias a partir de certa quantidade faz mal e produz estragos irreparáveis. #soucareta”. Em crônica de 3 de maio, Juremir retoma a questão, dizendo que o Oscar de Filme Internacional ficaria muito melhor nas mãos do bósnio Quo Vadis, Aida?, de Jasmila Žbanić. Embora quase sempre concorde com as ideias expostas e defendidas nas crônicas de Juremir, nesta sequência de textos e postagens não fecho completamente com ele, pois não vejo romantização ou apologia da bebida no filme, cujo enredo afigura-se, para mim, honesto em sua abordagem, mantendo um olhar ao mesmo tempo ambíguo e irônico sobre o assunto.

Druk mostra a história de quatro professores, colegas em um colégio de Ensino Médio de uma cidadezinha da Dinamarca, emparedados entre o tédio das aulas ministradas sem vontade, a rotina de cobranças dos pais de alunos e da direção da escola e a falência familiar. Não à toa, num mundo cada vez mais tecnologizado, em que a arte e a cultura soam inúteis, todos são professores da área de Humanas: Martin, de História; Tommy, de Educação Física; Nikolaj, de Psicologia; Peter, de Música. Um dia o grupo decide pôr em prática uma proposta ousada: a de que viver com uma certa dose de álcool no sangue, ao longo do dia, seja no trabalho, seja na convivência familiar, ajuda a enfrentar os males do cotidiano, embora alguns problemas prosaicos precisem ser solucionados: como dirigir sem causar acidentes ou infringir as normas de trânsito? Como carregar e armazenar a bebida na escola, sem ninguém notar? Como esconder o hálito? Aos poucos, as personagens vão seguindo as normativas do esquema etílico, com visíveis resultados positivos – por exemplo, o convívio com os alunos melhora e a vida familiar ganha novos ares.

A curva ascendente, no entanto, começa a decair, quando os quatro resolvem ultrapassar o 0,5% de álcool que a teoria diz que o ser humano pode ter no sangue – tese que não existe de fato, como o filósofo e psiquiatra norueguês Finn Skårderud, citado na película, deixa claro, embora ele tenha sido uma espécie de consultor do filme, ao qual considera “equilibrado”. O sucesso da empreitada faz com que os amigos aumentem o consumo, com os porres cada vez mais frequentes, o que acarreta vexames na escola e em casa – Martin entra trôpego em uma reunião de professores; Nikolaj urina na cama, após uma noitada regada a diferentes drinques. Na sequência, os casamentos de Martin e Nikolaj, que já estavam ruins, entram em colapso. E como coroamento trágico dessa escalada sem freios, um dos professores morre afogado, em decorrência de uma bebedeira. Ou seja, não há romantização do álcool, pois as personagens, mais do que libertos pelo álcool, vão ficando cada vez mais aprisionados pela dependência.

E mesmo a construção das personagens não pretende torná-las simpáticas ao espectador, pois não encontramos muita empatia nelas: Martin não se esforça em interagir com seus filhos ou sua esposa, Nikolaj não ajuda na criação de suas três crianças e Tommy pratica bullying em um de seus alunos, chamando-o de “Oclinhos”, com a convivência de ambos oscilando entre a humilhação e o carinho.

Dentro da trajetória negativa, um aspecto que realmente melhora na vida do quarteto é a relação aluno-professor. É neste sentido que queria reservar umas palavras para esse tópico, que não tem merecido uma abordagem mais detalhada nas análises da película, que acabam por se centrarem no álcool.

Druk é um “filme sobre professores”, subgênero que está a merecer um estudo mais acurado de especialistas e interessados em cinema e docência. Lembro algumas películas clássicas sobre o assunto: Ao mestre, com carinho; Sociedade dos Poetas Mortos; A onda; Entre os muros da escola; Garotos incríveis; O apartamento; Histórias proibidas – lembro que em muitos deles os protagonistas são professores de Literatura, curiosidade que eu, docente da matéria, não poderia deixar passar despercebida.

E qual o móvel da maioria desses enredos? Professores que, desmotivados por causa da estrutura precária das escolas, dos salários baixos, dos alunos sem interesse, descobrem uma maneira de reverter o jogo, trazendo os estudantes para o seu lado, seja pela simpatia, por um modo de tornar o conteúdo mais atrativo, por um clube de leitura, por um experimento radical. Em Druk, é a bebida que transforma o que estava ruim, equiparando os diferentes, em especial pela faixa de idade – de uma lado, adultos sem motivação; de outro, jovens cheios de vida –, o que fica claro na catártica cena final.

Assim, uma pergunta que salta aos olhos a partir do filme é: como cativar os alunos neste momento em que todo o tipo de informação está na rede, a um toque da tela ou num clique do mouse? Qual mesmo é a função e a utilidade do professor neste mundo? Provocativamente, o diretor dinamarquês oferece a bebida como uma opção didática, não fechando questão sobre os benefícios do álcool, em especial no longo prazo. Por isso, penso que o filme, além da bebida, fala também de questões vinculadas à prática pedagógica atual.

A par disso, claro que considero ótimo e necessário que Vinterberg traga o polêmico tema da bebida alcoólica à baila, afinal, estranhamente, temos na sociedade dois pesos e duas medidas: algumas drogas são liberadas – álcool, cigarro –, enquanto outras – maconha, cocaína –, não. Por qual motivo mesmo isso ocorre? Umas são menos letais ou alucinógenas que as outras? Pressão das indústrias tabagista, cervejeira e de destilados? Desejo dos governos de manterem determinados grupos sob controle, sob um ineficaz combate ao tráfico de drogas? A discussão é longa e não cabe neste texto. Só registro que sou a favor de liberar tudo, ficando o consumo a critério de cada um, desde que a pessoa tenha a clareza dos malefícios dos produtos, a partir de alertas vindos de campanhas governamentais e de avisos nas embalagens, por exemplo, além de se investir no tratamento adequado de desintoxicação àqueles que precisarem, afinal, isso é um problema de saúde pública, não de polícia.

No fim, volto ao início: levando em conta a pandemia e os governantes que se importam pouco com o povo e muito com o capital, o que nos resta? Uma opção é celebrar a vida: vendo o bom filme de Vinterberg, acompanhado, por que não, de um cálice de vinho, de um copo de cerveja ou de uma dose de gim.

Saúde!