Mauro Nicola Póvoas
Este final de abril e começo de maio de 2021 não está sendo
fácil para quem vive no Brasil, pois as notícias ruins continuam a desnortear.
Listá-las é complicado, pela quantidade.
A pandemia do coronavírus não diminui, pelo contrário,
a curva de contágios deve crescer ao longo dos próximos meses, com a volta das aulas
presenciais e as pessoas se aglomerando cada vez mais nas ruas.
Por mais incrível que pareça, Bolsonaro continua com
certa popularidade – inclusive almoçando com empresárias e recebendo apoio em
manifestações públicas, contra as indicações dos órgãos de saúde.
Paulo Guedes distribui falas incoerentes sobre “vírus
chinês”, universidades federais e o fato de que as pessoas, no Brasil, não
querem morrer, demonstrando a intenção de viverem até ficar bem velhinhas, o
que sobrecarregaria a Previdência...
As privatizações continuam, inclusive de estatais
estratégicas e fundamentais, como as companhias de água e esgoto, como a do Rio
de Janeiro, enquanto a venda da Corsan, no Rio Grande do Sul, avança na Assembleia
Legislativa.
E se em Santa Catarina uma creche foi invadida por um homem que matou duas professoras e três bebês, no Rio de Janeiro a polícia continua matando, como na recente operação para cumprir mandados de prisão que resultou em dezenas de cadáveres.
Como se pode constatar, viver neste Brasil de cores
milicianas, negacionistas, fascistas e privatistas é realmente um exercício de
paciência e sobrevivência. Neste sentido, o álcool pode ser um companheiro para
mascarar tudo de ruim que vemos e sentimos, ainda mais em isolamento social, o
que dificulta as coisas. Muitas vezes, a bebida ajuda a esquecer um pouco o mundo
lá fora.
E a bebida alcóolica, seja qual for, tem algumas
vantagens: é socialmente aceita, em geral é relativamente barata e abre as
“portas da percepção”, isto é, fornece novas experiências sensórias, desinibe e
facilita a interação. Tudo isso, claro, se tomada em doses adequadas e em
determinadas ocasiões – embora seja prudente perguntar: há doses seguras para o
consumo dessa droga? E o problema do alcoolismo, que acomete várias pessoas,
não pode ser varrido para embaixo do tapete. Enfim, é bom beber, em busca do
estado intermediário entre a sobriedade e a embriaguez, mas não se pode negar a
seriedade do problema que o uso contínuo e desmedido da bebida pode causar.
Em Druk – Mais uma rodada (2020), de Thomas
Vinterberg, que ganhou recentemente o Oscar de Melhor Filme Internacional
(categoria que era nomeada antes de Melhor Filme Estrangeiro), a questão da
bebida vem à tona. Gosto do dinamarquês Vinterberg, diretor de, entre outros, Festa
de família e Querida Wendy, e companheiro de seu compatriota Lars
Von Trier no manifesto Dogma 95, que pretendia trazer um olhar menos comercial
sobre a produção cinematográfica. Ao ver o filme, salta aos olhos que, na Dinamarca,
não são os problemas citados nos primeiros parágrafos que atordoam as
personagens, pois no contexto socioeconômico quase perfeito dos países escandinavos
são o vazio existencial e o sem sentido da vida que assustam as pessoas.
O filme causou certa polêmica, como se pode ver na
crônica de Juremir Machado da Silva, no jornal Correio do Povo de 28 de abril
de 2021, intitulada “Um porre”. Nela, o colunista expõe o seu espanto com o
fato de o filme ter sido premiado pela Academia com o Oscar, já que faria uma apologia
da bebida. Também em comentários na página pessoal no Facebook do professor e jornalista
houve repercussão, como se pode ver em uma postagem sua, um dia antes da
publicação impressa, em 27 de abril, às 18h14min: “Hoje fiquei sabendo que
criticar a romantização do alcoolismo e do álcool como estratégia pedagógica
(isso mesmo) pode ser chamado por alguns de moralismo. Então sou moralista.
Álcool todos os dias a partir de certa quantidade faz mal e produz estragos
irreparáveis. #soucareta”. Em crônica de 3 de maio, Juremir retoma a questão, dizendo
que o Oscar de Filme Internacional ficaria muito melhor nas mãos do bósnio Quo
Vadis, Aida?, de Jasmila Žbanić. Embora quase sempre concorde com as ideias
expostas e defendidas nas crônicas de Juremir, nesta sequência de textos e
postagens não fecho completamente com ele, pois não vejo romantização ou
apologia da bebida no filme, cujo enredo afigura-se, para mim, honesto em sua
abordagem, mantendo um olhar ao mesmo tempo ambíguo e irônico sobre o assunto.
Druk mostra a história de quatro professores,
colegas em um colégio de Ensino Médio de uma cidadezinha da Dinamarca,
emparedados entre o tédio das aulas ministradas sem vontade, a rotina de cobranças
dos pais de alunos e da direção da escola e a falência familiar. Não à toa, num
mundo cada vez mais tecnologizado, em que a arte e a cultura soam inúteis,
todos são professores da área de Humanas: Martin, de História; Tommy, de
Educação Física; Nikolaj, de Psicologia; Peter, de Música. Um dia o grupo
decide pôr em prática uma proposta ousada: a de que viver com uma certa dose de
álcool no sangue, ao longo do dia, seja no trabalho, seja na convivência
familiar, ajuda a enfrentar os males do cotidiano, embora alguns problemas prosaicos
precisem ser solucionados: como dirigir sem causar acidentes ou infringir as
normas de trânsito? Como carregar e armazenar a bebida na escola, sem ninguém
notar? Como esconder o hálito? Aos poucos, as personagens vão seguindo as
normativas do esquema etílico, com visíveis resultados positivos – por exemplo,
o convívio com os alunos melhora e a vida familiar ganha novos ares.
A curva ascendente, no entanto, começa a decair,
quando os quatro resolvem ultrapassar o 0,5% de álcool que a teoria diz que o ser
humano pode ter no sangue – tese que não existe de fato, como o filósofo e
psiquiatra norueguês Finn Skårderud, citado na película, deixa claro, embora
ele tenha sido uma espécie de consultor do filme, ao qual considera
“equilibrado”. O sucesso da empreitada faz com que os amigos aumentem o
consumo, com os porres cada vez mais frequentes, o que acarreta vexames na
escola e em casa – Martin entra trôpego em uma reunião de professores; Nikolaj
urina na cama, após uma noitada regada a diferentes drinques. Na sequência, os
casamentos de Martin e Nikolaj, que já estavam ruins, entram em colapso. E como
coroamento trágico dessa escalada sem freios, um dos professores morre afogado,
em decorrência de uma bebedeira. Ou seja, não há romantização do álcool, pois
as personagens, mais do que libertos pelo álcool, vão ficando cada vez mais
aprisionados pela dependência.
E mesmo a construção das personagens não pretende torná-las
simpáticas ao espectador, pois não encontramos muita empatia nelas: Martin não
se esforça em interagir com seus filhos ou sua esposa, Nikolaj não ajuda na
criação de suas três crianças e Tommy pratica bullying em um de seus
alunos, chamando-o de “Oclinhos”, com a convivência de ambos oscilando entre a
humilhação e o carinho.
Dentro da trajetória negativa, um aspecto que
realmente melhora na vida do quarteto é a relação aluno-professor. É neste
sentido que queria reservar umas palavras para esse tópico, que não tem
merecido uma abordagem mais detalhada nas análises da película, que acabam por se
centrarem no álcool.
Druk é um “filme sobre professores”, subgênero
que está a merecer um estudo mais acurado de especialistas e interessados em
cinema e docência. Lembro algumas películas clássicas sobre o assunto: Ao
mestre, com carinho; Sociedade dos Poetas Mortos; A onda; Entre
os muros da escola; Garotos incríveis; O apartamento; Histórias
proibidas – lembro que em muitos deles os protagonistas são professores de
Literatura, curiosidade que eu, docente da matéria, não poderia deixar passar
despercebida.
E qual o móvel da maioria desses enredos? Professores
que, desmotivados por causa da estrutura precária das escolas, dos salários
baixos, dos alunos sem interesse, descobrem uma maneira de reverter o jogo,
trazendo os estudantes para o seu lado, seja pela simpatia, por um modo de tornar o conteúdo mais atrativo, por um clube de leitura, por um experimento
radical. Em Druk, é a bebida que transforma o que estava ruim, equiparando
os diferentes, em especial pela faixa de idade – de uma lado, adultos sem
motivação; de outro, jovens cheios de vida –, o que fica claro na catártica
cena final.
Assim, uma pergunta que salta aos olhos a partir do filme
é: como cativar os alunos neste momento em que todo o tipo de informação está
na rede, a um toque da tela ou num clique do mouse? Qual mesmo é a função
e a utilidade do professor neste mundo? Provocativamente, o diretor dinamarquês
oferece a bebida como uma opção didática, não fechando questão sobre os benefícios do
álcool, em especial no longo prazo. Por isso, penso que o
filme, além da bebida, fala também de questões vinculadas à prática pedagógica
atual.
A par disso, claro que considero ótimo e necessário que
Vinterberg traga o polêmico tema da bebida alcoólica à baila, afinal,
estranhamente, temos na sociedade dois pesos e duas medidas: algumas drogas são
liberadas – álcool, cigarro –, enquanto outras – maconha, cocaína –, não. Por
qual motivo mesmo isso ocorre? Umas são menos letais ou alucinógenas que as
outras? Pressão das indústrias tabagista, cervejeira e de destilados? Desejo
dos governos de manterem determinados grupos sob controle, sob um ineficaz combate
ao tráfico de drogas? A discussão é longa e não cabe neste texto. Só registro
que sou a favor de liberar tudo, ficando o consumo a critério de cada um, desde
que a pessoa tenha a clareza dos malefícios dos produtos, a partir de alertas
vindos de campanhas governamentais e de avisos nas embalagens, por exemplo, além
de se investir no tratamento adequado de desintoxicação àqueles que precisarem,
afinal, isso é um problema de saúde pública, não de polícia.
No fim, volto ao início: levando em conta a pandemia e
os governantes que se importam pouco com o povo e muito com o capital, o que
nos resta? Uma opção é celebrar a vida: vendo o bom filme de Vinterberg,
acompanhado, por que não, de um cálice de vinho, de um copo de cerveja ou de uma
dose de gim.
Saúde!
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