10 maio, 2021

Há algo de ressaca no Reino da Dinamarca: "Druk" e os professores que bebiam

Mauro Nicola Póvoas


 



Este final de abril e começo de maio de 2021 não está sendo fácil para quem vive no Brasil, pois as notícias ruins continuam a desnortear. Listá-las é complicado, pela quantidade.

A pandemia do coronavírus não diminui, pelo contrário, a curva de contágios deve crescer ao longo dos próximos meses, com a volta das aulas presenciais e as pessoas se aglomerando cada vez mais nas ruas.

Por mais incrível que pareça, Bolsonaro continua com certa popularidade – inclusive almoçando com empresárias e recebendo apoio em manifestações públicas, contra as indicações dos órgãos de saúde.

Paulo Guedes distribui falas incoerentes sobre “vírus chinês”, universidades federais e o fato de que as pessoas, no Brasil, não querem morrer, demonstrando a intenção de viverem até ficar bem velhinhas, o que sobrecarregaria a Previdência...

As privatizações continuam, inclusive de estatais estratégicas e fundamentais, como as companhias de água e esgoto, como a do Rio de Janeiro, enquanto a venda da Corsan, no Rio Grande do Sul, avança na Assembleia Legislativa.

E se em Santa Catarina uma creche foi invadida por um homem que matou duas professoras e três bebês, no Rio de Janeiro a polícia continua matando, como na recente operação para cumprir mandados de prisão que resultou em dezenas de cadáveres.

Como se pode constatar, viver neste Brasil de cores milicianas, negacionistas, fascistas e privatistas é realmente um exercício de paciência e sobrevivência. Neste sentido, o álcool pode ser um companheiro para mascarar tudo de ruim que vemos e sentimos, ainda mais em isolamento social, o que dificulta as coisas. Muitas vezes, a bebida ajuda a esquecer um pouco o mundo lá fora.

E a bebida alcóolica, seja qual for, tem algumas vantagens: é socialmente aceita, em geral é relativamente barata e abre as “portas da percepção”, isto é, fornece novas experiências sensórias, desinibe e facilita a interação. Tudo isso, claro, se tomada em doses adequadas e em determinadas ocasiões – embora seja prudente perguntar: há doses seguras para o consumo dessa droga? E o problema do alcoolismo, que acomete várias pessoas, não pode ser varrido para embaixo do tapete. Enfim, é bom beber, em busca do estado intermediário entre a sobriedade e a embriaguez, mas não se pode negar a seriedade do problema que o uso contínuo e desmedido da bebida pode causar.

Em Druk – Mais uma rodada (2020), de Thomas Vinterberg, que ganhou recentemente o Oscar de Melhor Filme Internacional (categoria que era nomeada antes de Melhor Filme Estrangeiro), a questão da bebida vem à tona. Gosto do dinamarquês Vinterberg, diretor de, entre outros, Festa de família e Querida Wendy, e companheiro de seu compatriota Lars Von Trier no manifesto Dogma 95, que pretendia trazer um olhar menos comercial sobre a produção cinematográfica. Ao ver o filme, salta aos olhos que, na Dinamarca, não são os problemas citados nos primeiros parágrafos que atordoam as personagens, pois no contexto socioeconômico quase perfeito dos países escandinavos são o vazio existencial e o sem sentido da vida que assustam as pessoas.

O filme causou certa polêmica, como se pode ver na crônica de Juremir Machado da Silva, no jornal Correio do Povo de 28 de abril de 2021, intitulada “Um porre”. Nela, o colunista expõe o seu espanto com o fato de o filme ter sido premiado pela Academia com o Oscar, já que faria uma apologia da bebida. Também em comentários na página pessoal no Facebook do professor e jornalista houve repercussão, como se pode ver em uma postagem sua, um dia antes da publicação impressa, em 27 de abril, às 18h14min: “Hoje fiquei sabendo que criticar a romantização do alcoolismo e do álcool como estratégia pedagógica (isso mesmo) pode ser chamado por alguns de moralismo. Então sou moralista. Álcool todos os dias a partir de certa quantidade faz mal e produz estragos irreparáveis. #soucareta”. Em crônica de 3 de maio, Juremir retoma a questão, dizendo que o Oscar de Filme Internacional ficaria muito melhor nas mãos do bósnio Quo Vadis, Aida?, de Jasmila Žbanić. Embora quase sempre concorde com as ideias expostas e defendidas nas crônicas de Juremir, nesta sequência de textos e postagens não fecho completamente com ele, pois não vejo romantização ou apologia da bebida no filme, cujo enredo afigura-se, para mim, honesto em sua abordagem, mantendo um olhar ao mesmo tempo ambíguo e irônico sobre o assunto.

Druk mostra a história de quatro professores, colegas em um colégio de Ensino Médio de uma cidadezinha da Dinamarca, emparedados entre o tédio das aulas ministradas sem vontade, a rotina de cobranças dos pais de alunos e da direção da escola e a falência familiar. Não à toa, num mundo cada vez mais tecnologizado, em que a arte e a cultura soam inúteis, todos são professores da área de Humanas: Martin, de História; Tommy, de Educação Física; Nikolaj, de Psicologia; Peter, de Música. Um dia o grupo decide pôr em prática uma proposta ousada: a de que viver com uma certa dose de álcool no sangue, ao longo do dia, seja no trabalho, seja na convivência familiar, ajuda a enfrentar os males do cotidiano, embora alguns problemas prosaicos precisem ser solucionados: como dirigir sem causar acidentes ou infringir as normas de trânsito? Como carregar e armazenar a bebida na escola, sem ninguém notar? Como esconder o hálito? Aos poucos, as personagens vão seguindo as normativas do esquema etílico, com visíveis resultados positivos – por exemplo, o convívio com os alunos melhora e a vida familiar ganha novos ares.

A curva ascendente, no entanto, começa a decair, quando os quatro resolvem ultrapassar o 0,5% de álcool que a teoria diz que o ser humano pode ter no sangue – tese que não existe de fato, como o filósofo e psiquiatra norueguês Finn Skårderud, citado na película, deixa claro, embora ele tenha sido uma espécie de consultor do filme, ao qual considera “equilibrado”. O sucesso da empreitada faz com que os amigos aumentem o consumo, com os porres cada vez mais frequentes, o que acarreta vexames na escola e em casa – Martin entra trôpego em uma reunião de professores; Nikolaj urina na cama, após uma noitada regada a diferentes drinques. Na sequência, os casamentos de Martin e Nikolaj, que já estavam ruins, entram em colapso. E como coroamento trágico dessa escalada sem freios, um dos professores morre afogado, em decorrência de uma bebedeira. Ou seja, não há romantização do álcool, pois as personagens, mais do que libertos pelo álcool, vão ficando cada vez mais aprisionados pela dependência.

E mesmo a construção das personagens não pretende torná-las simpáticas ao espectador, pois não encontramos muita empatia nelas: Martin não se esforça em interagir com seus filhos ou sua esposa, Nikolaj não ajuda na criação de suas três crianças e Tommy pratica bullying em um de seus alunos, chamando-o de “Oclinhos”, com a convivência de ambos oscilando entre a humilhação e o carinho.

Dentro da trajetória negativa, um aspecto que realmente melhora na vida do quarteto é a relação aluno-professor. É neste sentido que queria reservar umas palavras para esse tópico, que não tem merecido uma abordagem mais detalhada nas análises da película, que acabam por se centrarem no álcool.

Druk é um “filme sobre professores”, subgênero que está a merecer um estudo mais acurado de especialistas e interessados em cinema e docência. Lembro algumas películas clássicas sobre o assunto: Ao mestre, com carinho; Sociedade dos Poetas Mortos; A onda; Entre os muros da escola; Garotos incríveis; O apartamento; Histórias proibidas – lembro que em muitos deles os protagonistas são professores de Literatura, curiosidade que eu, docente da matéria, não poderia deixar passar despercebida.

E qual o móvel da maioria desses enredos? Professores que, desmotivados por causa da estrutura precária das escolas, dos salários baixos, dos alunos sem interesse, descobrem uma maneira de reverter o jogo, trazendo os estudantes para o seu lado, seja pela simpatia, por um modo de tornar o conteúdo mais atrativo, por um clube de leitura, por um experimento radical. Em Druk, é a bebida que transforma o que estava ruim, equiparando os diferentes, em especial pela faixa de idade – de uma lado, adultos sem motivação; de outro, jovens cheios de vida –, o que fica claro na catártica cena final.

Assim, uma pergunta que salta aos olhos a partir do filme é: como cativar os alunos neste momento em que todo o tipo de informação está na rede, a um toque da tela ou num clique do mouse? Qual mesmo é a função e a utilidade do professor neste mundo? Provocativamente, o diretor dinamarquês oferece a bebida como uma opção didática, não fechando questão sobre os benefícios do álcool, em especial no longo prazo. Por isso, penso que o filme, além da bebida, fala também de questões vinculadas à prática pedagógica atual.

A par disso, claro que considero ótimo e necessário que Vinterberg traga o polêmico tema da bebida alcoólica à baila, afinal, estranhamente, temos na sociedade dois pesos e duas medidas: algumas drogas são liberadas – álcool, cigarro –, enquanto outras – maconha, cocaína –, não. Por qual motivo mesmo isso ocorre? Umas são menos letais ou alucinógenas que as outras? Pressão das indústrias tabagista, cervejeira e de destilados? Desejo dos governos de manterem determinados grupos sob controle, sob um ineficaz combate ao tráfico de drogas? A discussão é longa e não cabe neste texto. Só registro que sou a favor de liberar tudo, ficando o consumo a critério de cada um, desde que a pessoa tenha a clareza dos malefícios dos produtos, a partir de alertas vindos de campanhas governamentais e de avisos nas embalagens, por exemplo, além de se investir no tratamento adequado de desintoxicação àqueles que precisarem, afinal, isso é um problema de saúde pública, não de polícia.

No fim, volto ao início: levando em conta a pandemia e os governantes que se importam pouco com o povo e muito com o capital, o que nos resta? Uma opção é celebrar a vida: vendo o bom filme de Vinterberg, acompanhado, por que não, de um cálice de vinho, de um copo de cerveja ou de uma dose de gim.

Saúde!

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