Mauro Nicola Póvoas
Outro dia, no Telecine Cult, revi Crepúsculo dos deuses (Sunset blvd., 1950), de Billy Wilder, grande diretor. Já tinha visto esse filme há muito, muito tempo, e me lembro que na época gostei. Agora, pensei: está na hora de rever a película. É um grande filme, entra folgado em uma lista particular que está eternamente em construção, com os meus 25 filmes de todos os tempos (desisti de um lista de somente 10). A seguir, alguns dez pequenos comentários sobre o filme, que queria dividir com os interlocutores:
1) Além de tudo que apontarei a seguir, o filme me marca
por um dado sentimental e pessoal. Meu pai, Aldo Póvoas, foi um fanático por
cinema, bombardeado pelo star system hollywoodiano
das décadas de 1940 e 1950. Ainda guardamos, meus irmãos e eu, uma coleção de
mais de 130 fotografias enviadas para ele pelas maiores atrizes dos Estados
Unidos, a maioria assinadas. Uma cena em especial me emocionou no filme: Norma
Desmond (Gloria Swanson) assinando, ela mesma, as fotos para enviar aos fãs.
Depois sabemos que não há fãs, era tudo armação do mordomo-diretor-marido. Ainda
neste diapasão, outro dia vi um episódio de Além
da imaginação (Twilight zone), de 1959, que homenageia Crepúsculo dos deuses. E qual a atriz principal do episódio? Ida
Lupino, a atriz preferida do meu pai, que emula Gloria Swanson na série. Tudo
se conecta!
2) Filmes com caráter metalinguístico são para mim
invencíveis; mesmo os fracos, como o Nine,
com Daniel Day-Lewis, merecem ser vistos. Lembro de Quero ser John Malkovich, Adaptação e Sinédoque, Nova York,
de Spike Jonze/Charlie Kaufman; Noite
americana, de Truffaut; 8 ½, de Fellini; Cidade dos sonhos, de Lynch; Era uma vez em... Hollywood, de
Tarantino etc. A visita de Norma ao set
da Paramount comandando por Cecil B. DeMille está entre as grandes cenas do
cinema americano. O filme consegue equilibrar de forma genial uma das mais
lindas homenagens ao cinema, enquanto arte e entretenimento, ao mesmo tempo em que,
das entranhas da indústria, traz uma das mais impiedosas críticas a essa mesma
indústria.
3) A presença – claro que muda – de Buster Keaton jogando
cartas é outro toque genial. A homenagem ao cinema sem som e ao cinema em geral
está em tudo, como em Norma Desmond, lá pelas tantas, imitando Charlie Chaplin.
4) Tenho uma velha tese: os filmes clássicos, para
atingirem esse status, necessitam de grandes finais. Que final o deste
filme, entre os maiores do cinema, com Norma Desmond descendo as escadas, já
sem razão – ou está ela somente fazendo a sua última grande última? E o começo
não fica atrás, com a câmera fixada no asfalto da Sunset Boulevard, até que o
espectador chegue ao corpo afogado na piscina. A partir daqui, enumero dois itens
intertextuais, o 5 e o 6.
5) Impossível não lembrar do machadiano Memórias póstumas de Brás Cubas, já que
todo filme é narrado por um morto, o que possibilita um olhar acurado e
distanciado sobre aquela máquina de moer carne que é Hollywood.
6) Como não lembrar também de Cidade dos sonhos (Mulholland Dr.), filme de David Lynch que também
traz um olhar carinhoso e/ou impiedoso sobre o cinema hollywoodiano, e que
igualmente tem uma rua de Los Angeles no título?
7) Tecnicamente, o filme é perfeito: a fotografia em
preto-e-branco, o roteiro, a música, os atores, a direção do sempre competente
Billy Wilder. É o auge de uma indústria, a do cinema.
8) Até por conta do que comentei acima, não é de se
estranhar que o filme tenha ganhado três Oscars: direção de arte, música e
roteiro. Concorreu a filme, diretor, atriz, ator, atriz e ator coadjuvantes.
Fiquei pensando: como é que não ganhou melhor filme?! Aí fui ver quem ganhou em
1951: A malvada – calei-me. Era uma
época de deuses no mundo da tela. Por exemplo: o Oscar de 1949 foi para o Hamlet de Laurence Olivier.
9) O mordomo Max, vivido grandemente por Erich von
Stroheim, é um dos mais importantes personagens da trama, pois na verdade ele que
é o diretor da casa e da vida de Norma (na verdade, não será o diretor mesmo do
filme?), e até o fim ele faz essa função. O filme é mesmo para cinéfilos (tanto
que os personagens são roteiristas, atores, diretores), com várias alusões
cinematográficas, como as já aludidas de Chaplin, Keaton e DeMille.
10) Nancy Olson, a roteirista ambiciosa Betty Schaefer,
que é a namoradinha do cínico e folgazão Joe Gillis (William Holden), está viva
ainda, em outubro de 2021, com 93 anos (nasceu em 1928, mesmo ano, aliás, do
meu pai – estou dizendo, tudo se conecta...). No filme, ela faz uma menina
cheia de sonhos, que tem exatamente 22 anos (idade da atriz em 1950), o que
reforça uma atmosfera ambígua do filme: por um lado, traz o onírico,
matéria-prima do cinema, mas também, por outro, reforça uma verossimilhança “estranha”,
como se todos estivessem fazendo os papéis que protagonizam na realidade: DeMille,
o diretor; Swanson e Keaton, os decadentes; Olson, a que está começando a
carreira etc.
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