27 outubro, 2021

Dez comentários sobre "Crepúsculo dos deuses"

 

Mauro Nicola Póvoas

 



Outro dia, no Telecine Cult, revi Crepúsculo dos deuses (Sunset blvd., 1950), de Billy Wilder, grande diretor. Já tinha visto esse filme há muito, muito tempo, e me lembro que na época gostei. Agora, pensei: está na hora de rever a película. É um grande filme, entra folgado em uma lista particular que está eternamente em construção, com os meus 25 filmes de todos os tempos (desisti de um lista de somente 10). A seguir, alguns dez pequenos comentários sobre o filme, que queria dividir com os interlocutores:

1) Além de tudo que apontarei a seguir, o filme me marca por um dado sentimental e pessoal. Meu pai, Aldo Póvoas, foi um fanático por cinema, bombardeado pelo star system hollywoodiano das décadas de 1940 e 1950. Ainda guardamos, meus irmãos e eu, uma coleção de mais de 130 fotografias enviadas para ele pelas maiores atrizes dos Estados Unidos, a maioria assinadas. Uma cena em especial me emocionou no filme: Norma Desmond (Gloria Swanson) assinando, ela mesma, as fotos para enviar aos fãs. Depois sabemos que não há fãs, era tudo armação do mordomo-diretor-marido. Ainda neste diapasão, outro dia vi um episódio de Além da imaginação (Twilight zone), de 1959, que homenageia Crepúsculo dos deuses. E qual a atriz principal do episódio? Ida Lupino, a atriz preferida do meu pai, que emula Gloria Swanson na série. Tudo se conecta!

2) Filmes com caráter metalinguístico são para mim invencíveis; mesmo os fracos, como o Nine, com Daniel Day-Lewis, merecem ser vistos. Lembro de Quero ser John Malkovich, Adaptação e Sinédoque, Nova York, de Spike Jonze/Charlie Kaufman; Noite americana, de Truffaut; 8 ½, de Fellini; Cidade dos sonhos, de Lynch; Era uma vez em... Hollywood, de Tarantino etc. A visita de Norma ao set da Paramount comandando por Cecil B. DeMille está entre as grandes cenas do cinema americano. O filme consegue equilibrar de forma genial uma das mais lindas homenagens ao cinema, enquanto arte e entretenimento, ao mesmo tempo em que, das entranhas da indústria, traz uma das mais impiedosas críticas a essa mesma indústria.

3) A presença – claro que muda – de Buster Keaton jogando cartas é outro toque genial. A homenagem ao cinema sem som e ao cinema em geral está em tudo, como em Norma Desmond, lá pelas tantas, imitando Charlie Chaplin.

4) Tenho uma velha tese: os filmes clássicos, para atingirem esse status, necessitam de grandes finais. Que final o deste filme, entre os maiores do cinema, com Norma Desmond descendo as escadas, já sem razão – ou está ela somente fazendo a sua última grande última? E o começo não fica atrás, com a câmera fixada no asfalto da Sunset Boulevard, até que o espectador chegue ao corpo afogado na piscina. A partir daqui, enumero dois itens intertextuais, o 5 e o 6.

5) Impossível não lembrar do machadiano Memórias póstumas de Brás Cubas, já que todo filme é narrado por um morto, o que possibilita um olhar acurado e distanciado sobre aquela máquina de moer carne que é Hollywood.

6) Como não lembrar também de Cidade dos sonhos (Mulholland Dr.), filme de David Lynch que também traz um olhar carinhoso e/ou impiedoso sobre o cinema hollywoodiano, e que igualmente tem uma rua de Los Angeles no título?

7) Tecnicamente, o filme é perfeito: a fotografia em preto-e-branco, o roteiro, a música, os atores, a direção do sempre competente Billy Wilder. É o auge de uma indústria, a do cinema.

8) Até por conta do que comentei acima, não é de se estranhar que o filme tenha ganhado três Oscars: direção de arte, música e roteiro. Concorreu a filme, diretor, atriz, ator, atriz e ator coadjuvantes. Fiquei pensando: como é que não ganhou melhor filme?! Aí fui ver quem ganhou em 1951: A malvada – calei-me. Era uma época de deuses no mundo da tela. Por exemplo: o Oscar de 1949 foi para o Hamlet de Laurence Olivier.

9) O mordomo Max, vivido grandemente por Erich von Stroheim, é um dos mais importantes personagens da trama, pois na verdade ele que é o diretor da casa e da vida de Norma (na verdade, não será o diretor mesmo do filme?), e até o fim ele faz essa função. O filme é mesmo para cinéfilos (tanto que os personagens são roteiristas, atores, diretores), com várias alusões cinematográficas, como as já aludidas de Chaplin, Keaton e DeMille.

10) Nancy Olson, a roteirista ambiciosa Betty Schaefer, que é a namoradinha do cínico e folgazão Joe Gillis (William Holden), está viva ainda, em outubro de 2021, com 93 anos (nasceu em 1928, mesmo ano, aliás, do meu pai – estou dizendo, tudo se conecta...). No filme, ela faz uma menina cheia de sonhos, que tem exatamente 22 anos (idade da atriz em 1950), o que reforça uma atmosfera ambígua do filme: por um lado, traz o onírico, matéria-prima do cinema, mas também, por outro, reforça uma verossimilhança “estranha”, como se todos estivessem fazendo os papéis que protagonizam na realidade: DeMille, o diretor; Swanson e Keaton, os decadentes; Olson, a que está começando a carreira etc.


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