13 junho, 2021

Morrer e renascer em uma alvorada crepuscular

 

Mauro Nicola Póvoas



Estreou há poucos dias, nos cinemas e em streaming, Alvorada, documentário de Anna Muylaert e Lô Politi que pretende perscrutar, ao mesmo tempo, os recônditos do Palácio da Alvorada e a interioridade da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016). O crítico José Geraldo Couto chama a atenção, em seu blog de cinema hospedado no Instituto Moreira Salles, para o fato de o filme operar sob o signo do crepúsculo, embora o título envergue a palavra “Alvorada”. Ótimo paradoxo, que explica muita coisa.

A película compõe-se de cenas, muitas vezes tensas, que giram em torno de reuniões e conversas com a presença de políticos, advogados e assessores, sempre nas dependências da morada oficial dos presidentes do Brasil, entre 17 de abril (a votação na Câmara do impeachment, com placar de 367 votos a favor da destituição e 137 votos contra) e 31 de agosto de 2016 (a votação no Senado, com 61 votos a favor e 20 contra). Neste período de quatro meses e meio, Dilma encastelou-se no Palácio, articulando a busca de um desfecho favorável à sua permanência no cargo, o que, como se sabe, não aconteceu. Eleita com 54,5 milhões de votos, o golpe se consumou no último dia de agosto, mês aziago para presidentes da República brasileira; por exemplo, foi em agosto que Getúlio se suicidou, em 1954, e que Jânio renunciou, em 1961.

E falo golpe conscientemente, pois resta claro, cinco anos passados, que houve um conluio, de caráter misógino, entre elite, mercado, judiciário, mídia e políticos de centro-direita, com a intenção de abrir caminho para que, em 2018, um nome do PSDB triunfalmente ganhasse a eleição, a fim de, depois dos treze anos de PT no poder, ser possível reimplementar a agenda neoliberal de desmonte do Estado brasileiro. E a desculpa perfeita para o impedimento foi a das “pedaladas fiscais”, manobra contábil corriqueira entre os governantes, nunca admitida, antes, como crime de responsabilidade. O plano fez água pelo surgimento do fator Bolsonaro, que confundiu tudo, e entre o PT de novo e o “mito” (de pés de barro), o grupo aquele (elite, mercado etc.), como estava no Inferno, abraçou o Diabo.

O filme tem dois tipos de imagens, aquelas captadas com a naturalidade e a espontaneidade possíveis na situação, e a entrevista com a presidente. Essa conversa, vista por partes ao longo do filme, traz o melhor de Dilma, pois é quando ela se expõe um pouco mais, sem a crispação observada nas reuniões ou nas entrevistas dadas a órgãos de imprensa.

No todo, o que vem à tona é uma mulher “dura na queda”, que diz nunca se desesperar, embora estude as pessoas para ver o que as levam a cair, até para poder aprender com essa situação. A sensação geral é de uma pessoa solitária, de poucos sorrisos e amigos, sem jogo de cintura para transitar por um mundo tão masculino como o da política brasileira. A falta dessa capacidade de diálogo, junto com o incômodo dos homens por uma presença feminina em cargo tão prestigiado, foi um ingrediente fatal para o desencadeamento do processo de afastamento.

Estranhamente, como o filme demorou para vir a público – cinco anos depois dos fatos relatados –, o que ali está registrado parece já distante, tanto que nos lembramos que, naquele momento, a nossa preocupação maior era o “Fora, Temer!”. Incrível, mas o documentário lembra que se era ruim com o vice alçado ao poder, o ambiente ficou irrespirável com o sucessor.

E como o lançamento se dá agora, em plena vigência do mandato de Jair Bolsonaro, a comparação com o atual morador do Alvorada paira sobre toda a produção, até porque o começo do filme traz a voz do então deputado federal que, fantasmaticamente, ecoa em nossos ouvidos, com o detestável discurso proferido quando do seu voto pró-impeachment, em nome da família, de Deus, de Brilhante Ustra, a favor da tortura e tudo o mais. Uma falta de decoro, que não foi punida devidamente naquele momento, o que causaria o corte do mal pela raiz. Mas, paradoxalmente, mesmo com aquela tenebrosa fala (ou por causa dela?), ele foi eleito. Que país é este, afinal, em que as pessoas votaram em alguém racista, fascista, homofóbico, misógino, violento, agressivo, defensor de milícias? E para completar o cardápio, viria a se revelar, mais tarde, um genocida.

Assim, um aspecto impossível de passar despercebido é a comparação de Dilma Rousseff com Jair Bolsonaro. Nenhum dos dois é um campeão da retórica, pelo contrário, mas o estofo cultural das citações de Dilma, nas entrevistas, é interessante de ser anotado – Guimarães Rosa, John Milton, Hannah Arendt, Carlos Gardel. Se pensarmos em Jair, provavelmente ele nem saiba quem são os quatro citados, evidenciando assim que a boçalidade é o alicerce do governo federal.

Outro elemento que se sobressai é a solidão já comentada, pois nem a mãe (ainda viva na época), nem a filha de Dilma aparecem, marcando a posição da presidente de separar a vida pública da privada. Radicalmente diferente é a postura do atual mandatário, exemplo cabal do patrimonialismo que sempre marcou o Brasil, na mistura dos interesses familiares com as questões de Estado.

Por tudo isso, Alvorada dá um embrulho no estômago e uma melancolia, ao lembrar que ali começou todo esse despautério instaurado desde 31 de agosto de 2016, agudizado a partir de 1º de janeiro de 2019, com a ascensão do bolsonarismo. Dói ver a consumação de um processo injusto, que buscou por vias tortuosas o acesso ao poder, negado pelas urnas em quatro eleições consecutivas. O caminho foi o de romper a ordem democrática por uma via aparentemente legal, configurando a nova forma de dar golpes na América Latina, sem tanques nem derramamento de sangue, e respaldada pelas falácias do “ordenamento jurídico” e das “instituições que estão em pleno funcionamento” – como aliás se deu anos antes no Paraguai, na deposição-relâmpago do presidente Fernando Lugo, em 2012.

O filme circunscreve-se ao Palácio da Alvorada, diferente dos mais abrangentes O processo (2018, de Maria Augusta Ramos) e Democracia em vertigem (2019, de Petra Costa) que, junto com o filme de Anna Muylaert e Lô Politi, formam um tríptico de documentários sobre os últimos cinco anos da política brasileira. Não à toa, os três são dirigidos por mulheres, como se só o olhar feminino pudesse escrutinar e constatar toda a tristeza de ver a destruição moral, social, econômica, ambiental, cultural e educacional que se abateu sobre o país.

Aliás, sensibilidade feminina que Anna Muylaert já tinha demonstrado tão bem em Que horas ela volta? (2015), um dos melhores filmes brasileiros produzidos no século XXI. Comparado a Alvorada, o filme com Regina Casé resolve melhor, esteticamente falando, a demonstração das questões políticas que estão no cerne dos acontecimentos de 2016, ao desnudar com incrível lucidez os mecanismos da elite para inviabilizar a ascensão das classes socialmente mais frágeis nos governos Lula-Dilma (2003-2016)[1].

Em todo o caso, as cenas finais do documentário de Muylaert e Politi fazem pensar, pela beleza e pela simplicidade. Primeiro, a imagem do pássaro desnorteado que quer sair, mas não atina onde está a janela aberta (uma metáfora da gente, os brasileiros progressistas?); depois, a última tomada: um conjunto de empregadas, mulheres como as diretoras e a presidente, sentam-se na cadeira que era ocupada por Dilma e brincam por segundos de serem as todo-poderosas da nação. Mais mulheres, mais gente do povo, mais diversidade no poder, é isso que o filme parece dizer. Que bom: no encerramento, surge um rasgo de esperança no crepuscular Alvorada.



[1] Sobre esse filme, ler crítica postada no blog, mais abaixo.

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