Mauro Nicola Póvoas
A minha modesta, mas honesta, coleção de DVDs e Blu-Rays anda um pouco empoeirada. Composta por filmes de minha afeição – clássicos norte-americanos e europeus, adaptações literárias, algo da produção nacional, um tanto de coisas de terror –, ela anda esquecida pela ascensão e consolidação do streaming, em especial a partir da pandemia.
De vez em quando, porém, desencavo um dos box “Obras-primas
do terror”, ótima coleção da Versátil, com cada volume trazendo três DVDs, num
total de seis filmes de terror clássicos, em especial da décadas de 1950-1970.
O volume 1, que tenho aqui, traz produções dirigidas por Mario Bava, Roger
Corman, Robert Wise, Alberto Cavalcanti, Jacques Tourneur e Wolf Rilla. Esse
último, diretor alemão radicado no Reino Unido, é com certeza, dos seis, o
menos conhecido, mas entrou para a história do cinema por pelo menos um filme,
de origem inglesa: A aldeia dos amaldiçoados (Village of the damned), de
1960. Película direta, coesa, concisa (cerca de 75 minutos), a sua produção –
cenários, locações, efeitos – é módica, embora conte com um elenco
interessante, inclusive com George Sanders – ganhador do Oscar de melhor ator coadjuvante
em 1951, por A malvada – fazendo o protagonista, o professor Gordon
Zellaby.
A aldeia do título é a fictícia cidade britânica de
Midwich, onde todos os habitantes sofrem desmaios em determinada manhã, vindo a
acordar horas depois, no meio da tarde. Semanas depois, todas as mulheres
férteis do lugar ficam grávidas, para alguns meses depois terem os seus bebês,
todos parecidos entre si, possuidores de características como poderes
paranormais, olhos esquisitos, pele e cabelos alvos[1],
fios de cabelo com constituição molecular diferente, unhas mais curtas. O detalhe
é que algumas mulheres nunca tinham tido relações sexuais ou estavam com o
marido em viagem, o que abre para duas situações: uma, a dúvida na sociedade sobre
uma possível relação às escondidas ou adúltera dessas mulheres; outra, a alusão
bíblica a Maria, grávida de Jesus Cristo a partir da fecundação pelo Espírito
Santo, até porque era virgem, como algumas das mulheres da aldeia do filme. O
governo, temendo o alarde da população, oculta o ocorrido do restante do país, ao
mesmo tempo em que tenta achar explicações e monitora casos parecidos no planeta.
A aldeia dos amaldiçoados situa-se no entrelugar
entre o terror e a ficção científica (o trailer da época classifica o filme
neste último gênero), inserindo-se, assim, na linhagem de filmes com invasões alienígenas
produzidos em língua inglesa, iniciada nos anos 1950, no âmbito da Guerra Fria,
entre os países ocidentais e a União Soviética, cujos exemplos basilares são O
dia em que a Terra parou (1951), A guerra dos mundos (1953), Vampiros
de almas (1956) e A bolha (1958). Todavia, embora o enredo forneça
essa primeira possibilidade, a de uma investida extraterrestre[2]
(metáfora da ameaça comunista-soviética que pairava sobre a América na época),
surgem outras explicações divergentes sobre a origem das estranhas criaturas. Em
segundo lugar, elas podem, por exemplo, ser o fruto de uma mutação genética, uma
espécie de “evolução” do ser humano para esse novo patamar (aposto um café que
Stan Lee viu este filme – os X-Men são de 1963...), criadas por partenogênese,
um tipo de reprodução sexual em que um óvulo se desenvolve sem ter havido
fertilização, comum de acontecer em plantas e artrópodes, mas não em
vertebrados. Ou, ainda, terceira opção, ser o resultado da ação de um gás
derivado de uma guerra química. Uma quarta possibilidade de explicação seria
pura e simplesmente uma origem demoníaca das crianças, verdadeiros seres
amaldiçoados (conforme aponta o título) vindos não se sabe de onde para castigar
os seres humanos daquela sociedade. Seria por acaso a URSS, essa origem[3]?
O subtexto da ameaça comunista está já na cena
inaugural – aparentemente prosaica, no sentido de mostrar o aspecto rural da
cidadezinha – de um pastor conduzindo ovelhas. Mas pode-se pensar que o
rebanho, na verdade, alegoriza as crianças, que serão caracterizadas a seguir
como se fossem esses animais, portando-se como um grupo unificado e sem
personalidade individual. O fato de elas possuírem sentimento coletivo, sem
indícios de pessoalidade, aproxima-as do senso comum, que aponta como elementos
constituintes de um país comunista a planificação e o não respeito às
individualidades. A relação crianças/ovelhas fica mais óbvia ao se lembrar que
o olhar dos infantes, quando seus poderes estão ativados, assemelha-se bastante
aos olhos claros dos caprinos.
Um dado interessante é que o caso de Midwich não é
isolado, pois são identificadas crianças semelhantes em lugares distantes ou
exóticos. Dois desses eventos acontecem no mundo comunista: na fronteira da
Mongólia com a União Soviética, todas as mães e as crianças foram mortas pelos
pais, e nas montanhas do noroeste da URSS, elas começaram recebendo uma
“educação superior”, nas palavras do militar inglês que expõe a situação,
embora depois chegue a notícia de que os soviéticos destruíram o vilarejo com
uma bomba atômica, para conter os pequenos, algo que o “mundo civilizado” não
faria, pelo menos em um primeiro momento. O terceiro local é no norte da Austrália,
em que todas as crianças misteriosamente morreram logo após nascer. Já o quarto
episódio se dá no Polo Norte, onde os esquimós, como na Ásia, trucidaram as
crianças louras, em tudo diferentes do biotipo local – de novo o “nós” x “eles”,
pois os “selvagens” mataram-nas, os britânicos, não. Esse aspecto do contraponto
entre civilização e barbárie surge na cena em que os aldeões, como em Frankenstein,
querem vingar-se das crianças, linchando-as, mas são facilmente dominados por
David (filho de Gordon e sua esposa, Anthea), espécie de líder do grupo.
Quem contrasta com o povo furioso do vilarejo é o
professor Gordon, que com sua sofisticação intelectual, mais tarde, conseguirá
vencer os poderes telepáticos das criaturas. Neste sentido, o professor, que dá
aulas para os superdotados, é a pessoa esclarecida que nutre simpatia pelo
senso coletivo e comunitário demonstrado pelas crianças. Na sequência, porém,
Gordon sucumbe e se dá conta que só o extermínio delas, que representam o mal
em seu estado mais puro, resolverá a questão e evitará que elas dominem a raça
humana.
Como a solução final e radical implica a sua morte
também, o professor faz um exercício para bloquear os pensamentos das crianças,
imaginando um muro, pois os poderes extra-humanos delas (controle das ações de
terceiros; ler pensamentos; inteligência fora do comum; crescimento físico e
intelectual acelerado; pensamento conectado entre elas) descobririam o seu
intento. Advém daí uma das cenas mais famosas do filme, a parede de tijolos
mental que impede a visualização do plano de Gordon. Ele atinge o seu objetivo,
com o final mostrando a importância dos olhos na constituição das crianças,
pois são somente eles que o espectador vê, sob o fogo que a tudo consome. A
ameaça comunista (ou alienígena), para o bem de todos, é detida a tempo, embora
tenha causado algumas baixas no vilarejo, normais nestes casos.
O filme, passados mais de sessenta anos, continua
bom. Resistiu ao tempo; um clássico, portanto. Ele se encaixa nos padrões
cinematográficos da época para filmes de terror, com apenas três ou quatro
mortes, sem mostrar sangue ou corpos mutilados, ou seja, nada do excesso dos
filmes do gênero, que se acentuou a partir dos anos 1970. É uma produção estranhamente
fria em sua abordagem, de modo que o espectador não estabeleça laços de
compaixão com o destino fatal das crianças e com o fato de que, ao fim e ao
cabo, um pai mata o seu próprio filho.
Cabe dizer, ainda, que A aldeia dos amaldiçoados
se insere numa segunda tradição de filmes, também extensa, e bem mais perturbadora
do que a listagem anteriormente relatada, aquela das películas que tratam de
invasão de ETs, no influxo do pós-guerra. Essa outra linhagem é a das histórias
cinematográficas que trazem adolescentes, crianças ou bebês “do mal”, filmes nem
todos exatamente de terror: Os inocentes, O bebê de Rosemary, O
exorcista, Cría cuervos, Colheita maldita, O senhor das
moscas, A órfã, Precisamos falar sobre Kevin, A profecia[4],
sendo este, talvez, o mais famoso, por abordar o tema do anticristo, entrevisto
neste Aldeia.
Em tempo
A aldeia dos amaldiçoados, com o tempo, fruto
de sua perene presença no imaginário, entranhou-se na cultura popular. Por
exemplo, entre essas menções, há um episódio do seriado Os Simpsons em
que crianças iguais à de Midwich assombram Springfield, e o grupo britânico de
rock Iron Maiden gravou a música “Children of the damned”, presente no disco The
number of the beast, de 1982, e que alude ao filme. Além disso, o original
ganhou pelo menos dois filmes que dialogam diretamente com a película de 1960: A
estirpe dos malditos, de 1964, e A cidade do amaldiçoados, de 1995.
Não exatamente uma continuação, A estirpe dos
malditos (Children of damned), de Anton Leader, usa o mesmo mote de 1960 para
contar uma outra história – embora nos créditos se aponte que o filme é uma
sequência de Aldeia. À semelhança do original, os olhos das crianças
brilham, além de possuírem os mesmos poderes de antes: superinteligência e a
possibilidade de uma saber o que a outra pensa. Diferentemente de 1960, elas
não são parecidas entre si, já que cada uma apresenta características étnicas
distintas.
Agora, são seis crianças, cada uma proveniente de um
lugar do mundo: Inglaterra, Estados Unidos, União Soviética, China, Índia e
Nigéria, o que garante a diversidade e alude a uma fraternidade entre as nações
que não se dava no mundo real, pois todas estavam envolvidas, naquele momento,
com a Guerra Fria. O filme também traz um curioso embate entre duas visões dos
dois protagonistas adultos: o psicólogo, mais vinculado às ciências humanas, às
emoções e às sensações, e o geneticista, com seu olhar técnico sobre o corpo e
sua constituição.
O roteiro apresenta as crianças de forma ambígua,
pois aparentemente não são humanos, pois não têm pais, sendo talvez criados por
partenogênese – termo que aparece em toda a série de filmes. Por outro lado,
levanta-se a questão de que não são alienígenas ou mutantes, mas sim seres pertencentes
à raça humana, sendo na verdade pessoas 1 milhão de anos mais avançadas, em
relação ao presente.
Interessante notar que as crianças se escondem numa
igreja (de novo, um aspecto que alude à religiosidade, como se vê subliminarmente
no primeiro filme), onde a maior parte da história se desenvolve, dando a ideia
de que a partir daquele lugar sagrado começariam o domínio do mundo e a sua
respectiva salvação, tendo em vista a superioridade cognitiva e intelectual das
pequenas criaturas. Ao fim, porém, o templo religioso não impede a aniquilação
de todas as crianças, que morrem nas mãos do poder militar dos homens.
Por sua vez, o remake A cidade dos amaldiçoados (Village of the damned), dirigido por John Carpenter, traz
alguns atores-símbolos do cinema de aventura e ficção, como Christopher “Super-Homem”
Reeve (um de seus últimos trabalhos antes da queda de um cavalo que o deixaria
tetraplégico) e Mark “Luke Skywalker” Hamill, em uma homenagem de Carpenter a
esses dois gêneros, cultivados em sua paradigmática obra.
Mais ou menos seguindo o roteiro original, Carpenter faz
pequenas alterações na história de 1960, com fins dramáticos, entre as quais
destaco:
. Midwich agora é uma cidade norte-americana;
. o protagonista, um doutor, não estava na cidade quando
do “blecaute”, como é chamado, no filme, o episódio. Um dado igual, porém, é
que ele se dedicará a dar aulas às crianças, no decorrer da narrativa;
. a esposa do médico, mãe de um das crianças, se mata;
. o doutor e sua esposa não têm um filho, mas uma
filha, em um protagonismo feminino do filme novecentista que não se verifica em
1960;
. a presença de uma cientista, que substitui, ao
mesmo tempo, o membro do governo e o cunhado do filme original e o geneticista
da “sequência” de 1964;
. não há a preocupação em se explicar tanto os fatos
ocorridos, como, por exemplo, por qual motivo elas crescem tão rápido. Em todo
o caso, há explicações “científicas” para o acontecimento, como a já aludida
partenogênese;
. não se dá tanta ênfase às crianças de outros países,
amenizando a ameaça comunista ou alienígena, elemento forte no filme de 1960. O
elo interplanetário, no entanto, se dá pela aparição de um feto com aparência extraterreste,
morto e guardado em formol pela cientista, numa situação pouco explicada no
filme.
Há muito mais mortes sanguinolentas na refilmagem de
John Carpenter – pessoas se suicidando, sendo carbonizadas ou morrendo cruelmente
–, até para atender aos interesses do público da época, já habituado a filmes
mais violentos. Bom exemplo é a cena do carro que bate em um muro, por influência
das crianças – discreta em 1960, apresenta-se explosiva em 1995.
Outro momento que está em 1960 e se repete em 1995, é
o final, demonstrando pequenas diferenças. O muro do original é substituído
pela imagem de um oceano, além da presença de uma das mães na cena, o que
interfere na tensão, maior no original, já que lá a disputa psicológica era
somente entre o doutor/professor e as crianças.
Mais para o fim, há uma cena curiosa, que expõe a
visão de Carpenter, muitas vezes crítico da sociedade norte-americana (veja-se,
por exemplo, Eles vivem [They live], filmado uns anos antes, em 1987).
Estou falando da bizarra sequência em que policiais, chamados para resolverem a
situação, acabam se autotrucidando, visão irônica das forças estatais de
segurança, aquelas mesmas que deveriam proteger os cidadãos, mas que, na cena, lutam
entre si.
O filme de 1995 é bom, afinal é dirigido por
Carpenter, um dos mestres do terror contemporâneo. Mas a sensação que resta, ao
final, é a mesma que surge todas as vezes em vemos uma refilmagem: qual o
sentido de reatualizar um clássico? Em geral, isso significa fazer um filme que
será malfadado (Psicose, por exemplo) ou que não chegará no nível do
original (no caso aqui em tela).
[1]
Aqui, uma ambiguidade: de um lado, o filme poderia ser eventualmente apontado
como racista, por colocar a etnia branca como aquela responsável por uma espécie
de evolução dos seres humanos; por outro, ao colocar essas crianças brancas como
más e destruidoras, o roteiro confirma aquilo que se sabe historicamente, caso
se lembre das inúmeras guerras na Europa, ao longo dos tempos; do massacre dos
povos originários nas Américas; e da escravidão negra, episódios perpetrados,
em geral, pelos brancos. Como se verá a seguir, essa questão se dilui na
“sequência” A estirpe dos malditos, pois o grupo ali reunido compõe-se
de crianças brancas, negras e asiáticas.
[2]
Importante pensar que se a perspectiva da invasão interplanetária fosse levada
a cabo, traria em seu bojo a constatação, nada agradável, de que as mulheres
teriam sofrido um “estupro interseres”, no sentido de que foram relações não
consensuais.
[3]
“Crianças do mal” advindas de algum dos países comunistas, que em geral não
estimulam a prática religiosa. Eis um retrato simplificador, embora eficiente,
que pode ser elaborado a partir do filme, emulando o que se pensava, no
restante da Europa e nos EUA, do Leste europeu.
[4]
O quinto episódio da segunda temporada da ótima série Eli Roth’s History of
Horror trata desse subgênero dos filmes de terror, exatamente aqueles que
trazem “crianças sinistras” como personagens, citando inclusive muitos dos
filmes listadas acima. Vale a pena assistir.
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