Mauro Nicola Póvoas
Foi lançado nas plataformas digitais (Looke, Now etc.), no início de agosto, talvez o primeiro filme a abordar o coronavírus e o estrago que ele tem feito ao redor do mundo, seja com mortes, seja no psicológico de todos nós, que estamos convivendo com o distanciamento social há já tantos meses, sem saber quantos mais vêm pela frente: trata-se de Antologia da pandemia, produzido por João Pedro Fleck, Nicolas Tonsho, João Pedro Teixeira e Fernando Sanches, todos vinculados ao Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa), que recentemente teve a sua 16ª edição, em versão on-line.
A película aposta na composição
em episódios, recurso clássico em narrativas cinematográficas de terror, como
em Na solidão da noite (1945, com
dois segmentos dirigidos pelo brasileiro Alberto Cavalcanti), Histórias extraordinárias (1968, com
direção de Federico Fellini, Louis Malle e Roger Vadim, baseado na obra de
Edgar Allan Poe) ou Creepshow I e II
(1982 e 1987, por George A. Romero e Michael Gornick, respectivamente, a partir
de Stephen King). Como costuma acontecer neste tipo de filme, em Antologia da pandemia o resultado é desigual,
com episódios empolgantes e/ou fascinantes pelas questões que suscitam, e
outros que pecam por seus atributos técnicos e/ou estéticos.
É mesmo difícil manter uma
regularidade ao longo de treze curtas – sete brasileiros, seis estrangeiros –,
os quais encontram a sua unidade temática na pandemia que assola o mundo ao
longo deste inesquecível e inacreditável 2020. Não custa dizer que o número de
episódios não está ali à toa, pois o treze traz consigo uma carga supersticiosa
relacionada ao azar e uma simbologia política no Brasil. A sequência dos
episódios, seus diretores e suas nacionalidades, em ordem de entrada, é a
seguinte:
1.
Quarentena sem fim, de Fabrício Bittar (Brasil)
2.
O último dia, de Guillermo Carbonell (Uruguai)
3.
Estúpidemia, de Junior Larethian (Brasil)
4.
Baldomero, de Martín Blousson (Argentina)
5.
Jérôme: um conto de Natal, de Beatriz Saldanha
(Brasil)
6.
Eclosão, de Alejo Rébora (Argentina)
7.
A mancha na parede, de Daniel Pires (Brasil)
8.
Pique-esconde macabro, de Julio Cesar Napoli
Filho (Brasil)
9.
Barata, de Emerson Niemchick (EUA)
10.
Às vezes ela volta, de Matheus Maltempi (Brasil)
11.
Desenterrado, de Karl Holt (Reino Unido)
12.
Psicopompo, de Giordano Gio (Brasil)
13.
Roleta-russa, de Andreas “splash” Kyriacou
(Chipre)
Em quase todos, há o uso de
ferramentas de comunicação, como Skype, WhatsApp e programas de videoconferências,
evocando o “novo normal” dos tempos de hoje, em que reuniões de trabalho, festas
de aniversário, aulas ou uma simples conversa para matar saudades de um amigo ou
parente precisam ser mediadas pelo computador ou celular. Em sua maioria, os
personagens estão ou sozinhos em suas casas, ou com seus animais de estimação, a
maioria sem companhia humana, o que leva à irritação, à desmedida e à
insanidade mental, elementos que temperam as histórias.
Nota-se a presença de subgêneros
tradicionais do terror, em enredos permeados pela doença ameaçadora e pela
tecnologia que deveria ser um bálsamo: zumbis, fantasmas, ficção científica,
bonecos assassinos, loucura, pacto com o diabo, metamorfose. Chama a atenção,
também, o viés distópico de certos episódios, o que aumenta a letalidade do
vírus e a sua capacidade de disseminação, já grandes na vida real, com o fim de
maximizar o terror – assim, observam-se sintomas como estupidificação (em “Estúpedemia”),
animalização (em “Eclosão”) e zumbificação (“Às vezes ela volta”), ou maneiras
de transmissão devastadoras, não só pelo contágio interpessoal, mas também pela
Internet, por meio de áudios ou lives,
em “Quarentena sem fim” e em “Estúpedemia”. O caráter apocalíptico fica claro no
primeiro episódio, onde a epidemia ainda continua, em março de 2022, ou em “O
último dia”, em que o lockdown dura
já exatos 2.153 dias (cerca de seis anos). Essa segunda, produção uruguaia, embora
pequena em sua duração, é impactante em seu desfecho, ao estabelecer uma
interessante oposição: dois objetos de baixa tecnologia (os quais sempre ganham
importância nos momentos em que a sociedade entra em falência, algo comumente
retratado na ficção científica), o livro que a menina lê, O Pequeno Príncipe (El
Principito, na tradução em espanhol), e o rádio de pilha que o menino escuta
versus o objeto altamente sofisticado,
do ponto de vista técnico, que surpreendentemente aparece ao final.
Um aspecto louvável da coletânea é
trazer o momento político do Brasil, devastado pelo governo inepto que desde
2019 afunda a nação, com descaso pela pandemia, pelo meio ambiente, pela
educação, pela cultura, pela verdade, por tudo, enfim. Isso aparece em “Estúpidemia”
e “Psicopompo”, em minha opinião dois dos episódios mais deficientes: o
primeiro, pela atuação pouco convincente dos atores; o segundo, pela abordagem
da questão da loucura paulatina causada pelo isolamento, tema fundamental no
contexto, que poderia ser melhor explorado. Entretanto, paradoxalmente, ambos são
certeiros ao lembrarem o contexto político atual: o fascismo que campeia no Brasil
(no 3), a aceleração sem freio do número de mortos (retratada na voz que não
para de contabilizar os que foram derrotados pela doença, no 12), os panelaços
que cobriram o país em determinado momento de 2020 (igualmente no 12).
Em agosto, quando escrevo, parece
que as pessoas cansaram de protestar e perderam sua capacidade de indignação,
abatidas pela permanência do “presidente” no cargo, a que se aferra não para
governar tendo em vista a população em geral, mas para proteger a si e a seus
familiares. E tudo isso com a complacência da grande mídia, das elites e do
empresariado, que por vezes até atacam o conservadorismo atroz dos mandatários encastelados
no Palácio do Planalto. Todavia, ao fim e ao cabo, esses grupos não querem o
impedimento do governo, porque na economia o trabalho sujo que lhes convém – privatização
desenfreada, aceleração de reformas, precarização da vida dos mais necessitados
– está sendo feito por Paulo Guedes e companhia.
Por sua vez, um elemento que
alivia o clima pesado da película é o humor, voluntário ou não, como nos bonecos
que ganham vida em “Baldomero” e “Pique-esconde macabro”, o que cria uma aura
de “terrir” nos episódios: no primeiro citado, há a dúvida entre o caráter do
boneco, se do “mal” ou do “bem”; já no segundo, o fato de a boneca ter sido
adquirida pelo Mercado Livre imediatamente cria laços com o espectador, pois quem
não comprou por essa plataforma durante a quarentena? Mais um exemplo de válvula
de escape é a presença dos gatos em “Jérôme: um conto de Natal”, embora aqui
essa suposta leveza se mescle a um pacto com o diabo, o que gera surpresa e estranheza.
Aliás, como dito anteriormente, gatos e cachorros aparecem em outros episódios,
como no terceiro e no décimo segundo, fazendo companhia às pessoas isoladas.
Entre sugestionar ou mostrar,
dicotomia observada ao longo da história do cinema de horror, Antologia da pandemia apresenta bons
exemplos dos dois caminhos. Um dos melhores episódios, “Às vezes ela volta”
(título que lembra um conto de Stephen King, “Às vezes eles voltam”), aborda um
tema que, por excelência, contém conteúdo explícito: zumbis. Aqui, no entanto,
nada é mostrado, pois tudo acaba sendo imaginado pelo espectador, por
intermédio das mensagens de WhatsApp trocadas pela protagonista, sua irmã e sua
mãe. Já os curtas “A mancha na parede”, “Barata” e “Desenterrado” ocupam-se em
maior medida com o susto final e o medo, sensação fundamental no gênero. “A
mancha na parede” e “Desenterrado” constroem muito bem a escalada de tensão,
com personagens que, isolados, parecem perder o senso, criando uma atmosfera
fantástica, em que já não se sabe o que é realidade e o que é imaginação. A
produção norte-americana “Barata” traz uma cena final tétrica, que lembra aquela passagem de Pulp fiction, em um porão de loja, ou filmes tipo O albergue e
Jogos mortais.
Outro curta que se destaca é o
décimo terceiro e último, “Roleta-russa”. O episódio que encerra a antologia é ambientado
em uma sala de videoconferência, com homens e mulheres interagindo a distância,
em uma brincadeira macabra para ver quem pega o coronavírus primeiro. As
pessoas mostram-se com os nervos à flor da pele, em decorrência da incerteza
trazida pela pandemia, tão desnorteadas que chegam ao ponto de jogarem com a
morte e a doença – o ser humano, pouco resistente, confrontado com situações
extremas, deixa-se entregar facilmente ao acaso ou à ira.
Antologia da pandemia é uma montanha-russa de emoções, oferecendo visões
ora trágicas, ora cômicas do momento peculiar pelo qual todos estamos
atravessando. A par das limitações técnicas e físicas de uma produção feita por
cada um dos diretores a partir de sua situação particular de isolamento, o
conjunto merece ser visto, mesmo por quem não aprecia o gênero horror, pois é,
desde já, um documento histórico que dá conta, para as gerações futuras, do que
se passa hoje no mundo e em especial no Brasil, afinal, o que foi mesmo que
fizemos para merecer, ao mesmo tempo, a Covid-19 e o “presidente” Bolsonaro?
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