19 agosto, 2020

"Antologia da pandemia" acerta ao ir de 13

Mauro Nicola Póvoas

 


Foi lançado nas plataformas digitais (Looke, Now etc.), no início de agosto, talvez o primeiro filme a abordar o coronavírus e o estrago que ele tem feito ao redor do mundo, seja com mortes, seja no psicológico de todos nós, que estamos convivendo com o distanciamento social há já tantos meses, sem saber quantos mais vêm pela frente: trata-se de Antologia da pandemia, produzido por João Pedro Fleck, Nicolas Tonsho, João Pedro Teixeira e Fernando Sanches, todos vinculados ao Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa), que recentemente teve a sua 16ª edição, em versão on-line.

A película aposta na composição em episódios, recurso clássico em narrativas cinematográficas de terror, como em Na solidão da noite (1945, com dois segmentos dirigidos pelo brasileiro Alberto Cavalcanti), Histórias extraordinárias (1968, com direção de Federico Fellini, Louis Malle e Roger Vadim, baseado na obra de Edgar Allan Poe) ou Creepshow I e II (1982 e 1987, por George A. Romero e Michael Gornick, respectivamente, a partir de Stephen King). Como costuma acontecer neste tipo de filme, em Antologia da pandemia o resultado é desigual, com episódios empolgantes e/ou fascinantes pelas questões que suscitam, e outros que pecam por seus atributos técnicos e/ou estéticos.

É mesmo difícil manter uma regularidade ao longo de treze curtas – sete brasileiros, seis estrangeiros –, os quais encontram a sua unidade temática na pandemia que assola o mundo ao longo deste inesquecível e inacreditável 2020. Não custa dizer que o número de episódios não está ali à toa, pois o treze traz consigo uma carga supersticiosa relacionada ao azar e uma simbologia política no Brasil. A sequência dos episódios, seus diretores e suas nacionalidades, em ordem de entrada, é a seguinte:

1.       Quarentena sem fim, de Fabrício Bittar (Brasil)

2.       O último dia, de Guillermo Carbonell (Uruguai)

3.       Estúpidemia, de Junior Larethian (Brasil)

4.       Baldomero, de Martín Blousson (Argentina)

5.       Jérôme: um conto de Natal, de Beatriz Saldanha (Brasil)

6.       Eclosão, de Alejo Rébora (Argentina)

7.       A mancha na parede, de Daniel Pires (Brasil)

8.       Pique-esconde macabro, de Julio Cesar Napoli Filho (Brasil)

9.       Barata, de Emerson Niemchick (EUA)

10.   Às vezes ela volta, de Matheus Maltempi (Brasil)

11.   Desenterrado, de Karl Holt (Reino Unido)

12.   Psicopompo, de Giordano Gio (Brasil)

13.   Roleta-russa, de Andreas “splash” Kyriacou (Chipre)

Em quase todos, há o uso de ferramentas de comunicação, como Skype, WhatsApp e programas de videoconferências, evocando o “novo normal” dos tempos de hoje, em que reuniões de trabalho, festas de aniversário, aulas ou uma simples conversa para matar saudades de um amigo ou parente precisam ser mediadas pelo computador ou celular. Em sua maioria, os personagens estão ou sozinhos em suas casas, ou com seus animais de estimação, a maioria sem companhia humana, o que leva à irritação, à desmedida e à insanidade mental, elementos que temperam as histórias.

Nota-se a presença de subgêneros tradicionais do terror, em enredos permeados pela doença ameaçadora e pela tecnologia que deveria ser um bálsamo: zumbis, fantasmas, ficção científica, bonecos assassinos, loucura, pacto com o diabo, metamorfose. Chama a atenção, também, o viés distópico de certos episódios, o que aumenta a letalidade do vírus e a sua capacidade de disseminação, já grandes na vida real, com o fim de maximizar o terror – assim, observam-se sintomas como estupidificação (em “Estúpedemia”), animalização (em “Eclosão”) e zumbificação (“Às vezes ela volta”), ou maneiras de transmissão devastadoras, não só pelo contágio interpessoal, mas também pela Internet, por meio de áudios ou lives, em “Quarentena sem fim” e em “Estúpedemia”. O caráter apocalíptico fica claro no primeiro episódio, onde a epidemia ainda continua, em março de 2022, ou em “O último dia”, em que o lockdown dura já exatos 2.153 dias (cerca de seis anos). Essa segunda, produção uruguaia, embora pequena em sua duração, é impactante em seu desfecho, ao estabelecer uma interessante oposição: dois objetos de baixa tecnologia (os quais sempre ganham importância nos momentos em que a sociedade entra em falência, algo comumente retratado na ficção científica), o livro que a menina lê, O Pequeno Príncipe (El Principito, na tradução em espanhol), e o rádio de pilha que o menino escuta versus o objeto altamente sofisticado, do ponto de vista técnico, que surpreendentemente aparece ao final.

Um aspecto louvável da coletânea é trazer o momento político do Brasil, devastado pelo governo inepto que desde 2019 afunda a nação, com descaso pela pandemia, pelo meio ambiente, pela educação, pela cultura, pela verdade, por tudo, enfim. Isso aparece em “Estúpidemia” e “Psicopompo”, em minha opinião dois dos episódios mais deficientes: o primeiro, pela atuação pouco convincente dos atores; o segundo, pela abordagem da questão da loucura paulatina causada pelo isolamento, tema fundamental no contexto, que poderia ser melhor explorado. Entretanto, paradoxalmente, ambos são certeiros ao lembrarem o contexto político atual: o fascismo que campeia no Brasil (no 3), a aceleração sem freio do número de mortos (retratada na voz que não para de contabilizar os que foram derrotados pela doença, no 12), os panelaços que cobriram o país em determinado momento de 2020 (igualmente no 12).

Em agosto, quando escrevo, parece que as pessoas cansaram de protestar e perderam sua capacidade de indignação, abatidas pela permanência do “presidente” no cargo, a que se aferra não para governar tendo em vista a população em geral, mas para proteger a si e a seus familiares. E tudo isso com a complacência da grande mídia, das elites e do empresariado, que por vezes até atacam o conservadorismo atroz dos mandatários encastelados no Palácio do Planalto. Todavia, ao fim e ao cabo, esses grupos não querem o impedimento do governo, porque na economia o trabalho sujo que lhes convém – privatização desenfreada, aceleração de reformas, precarização da vida dos mais necessitados – está sendo feito por Paulo Guedes e companhia.

Por sua vez, um elemento que alivia o clima pesado da película é o humor, voluntário ou não, como nos bonecos que ganham vida em “Baldomero” e “Pique-esconde macabro”, o que cria uma aura de “terrir” nos episódios: no primeiro citado, há a dúvida entre o caráter do boneco, se do “mal” ou do “bem”; já no segundo, o fato de a boneca ter sido adquirida pelo Mercado Livre imediatamente cria laços com o espectador, pois quem não comprou por essa plataforma durante a quarentena? Mais um exemplo de válvula de escape é a presença dos gatos em “Jérôme: um conto de Natal”, embora aqui essa suposta leveza se mescle a um pacto com o diabo, o que gera surpresa e estranheza. Aliás, como dito anteriormente, gatos e cachorros aparecem em outros episódios, como no terceiro e no décimo segundo, fazendo companhia às pessoas isoladas.

Entre sugestionar ou mostrar, dicotomia observada ao longo da história do cinema de horror, Antologia da pandemia apresenta bons exemplos dos dois caminhos. Um dos melhores episódios, “Às vezes ela volta” (título que lembra um conto de Stephen King, “Às vezes eles voltam”), aborda um tema que, por excelência, contém conteúdo explícito: zumbis. Aqui, no entanto, nada é mostrado, pois tudo acaba sendo imaginado pelo espectador, por intermédio das mensagens de WhatsApp trocadas pela protagonista, sua irmã e sua mãe. Já os curtas “A mancha na parede”, “Barata” e “Desenterrado” ocupam-se em maior medida com o susto final e o medo, sensação fundamental no gênero. “A mancha na parede” e “Desenterrado” constroem muito bem a escalada de tensão, com personagens que, isolados, parecem perder o senso, criando uma atmosfera fantástica, em que já não se sabe o que é realidade e o que é imaginação. A produção norte-americana “Barata” traz uma cena final tétrica, que lembra aquela passagem de Pulp fiction, em um porão de loja, ou filmes tipo O albergue e Jogos mortais.

Outro curta que se destaca é o décimo terceiro e último, “Roleta-russa”. O episódio que encerra a antologia é ambientado em uma sala de videoconferência, com homens e mulheres interagindo a distância, em uma brincadeira macabra para ver quem pega o coronavírus primeiro. As pessoas mostram-se com os nervos à flor da pele, em decorrência da incerteza trazida pela pandemia, tão desnorteadas que chegam ao ponto de jogarem com a morte e a doença – o ser humano, pouco resistente, confrontado com situações extremas, deixa-se entregar facilmente ao acaso ou à ira.

Antologia da pandemia é uma montanha-russa de emoções, oferecendo visões ora trágicas, ora cômicas do momento peculiar pelo qual todos estamos atravessando. A par das limitações técnicas e físicas de uma produção feita por cada um dos diretores a partir de sua situação particular de isolamento, o conjunto merece ser visto, mesmo por quem não aprecia o gênero horror, pois é, desde já, um documento histórico que dá conta, para as gerações futuras, do que se passa hoje no mundo e em especial no Brasil, afinal, o que foi mesmo que fizemos para merecer, ao mesmo tempo, a Covid-19 e o “presidente” Bolsonaro?

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