Mauro Nicola Póvoas
Nestes tempos pandêmicos, volto a abordar um filme sobre o coronavírus, que se alastra pelo mundo neste 2020, e teima em não ir embora. Falei na outra frase em “filme”, mas não sei se o termo correto é este, talvez fosse série. Quem me conhece sabe que não gosto muito de séries, pouco vejo e quase nada sei sobre elas, e o blog se determina a falar de filmes, não de séries, então fiquei um tempo matutando se deveria escrever ou não sobre Feito em casa (Homemade), que está disponível na Netflix desde 30 de junho de 2020.
Mas enfim, como podem ver, ganhou
a ideia de que se trata de um filme em episódios, assim como Antologia da pandemia, por mim aqui comentado
em agosto, embora a Netflix venda a coisa toda como uma série. Tanto assim que,
na plataforma, aparece um “Volume 1”, aludindo ao fato de que em breve possa surgir
uma segunda temporada, além de na descrição aparecer que os episódios podem ser
assistidos na ordem que o espectador quiser, sem seguir o pré-estabelecido. Eu,
no entanto, aferrado à ideia do conjunto, optei por ver na sequência.
São 17 curtas, com duração de 5 a
11 minutos, dirigidos por gente de vários lugares do mundo (chama a atenção as
origens híbridas dos envolvidos, que colocam em xeque a noção de nacionalidade),
projeto idealizado pelo chileno Pablo Larraín. Há uma mescla de diretores menos
conhecidos com nomes importantes, como o italiano Paolo Sorrentino, Oscar de melhor
filme estrangeiro por A grande beleza,
todos convidados a darem as suas visões do momento, obedecendo ao isolamento
social e utilizando os meios disponíveis – histórias autoficcionais, familiares
como atores, câmeras de celulares, cenários extraídos das próprias casas. Chama
a atenção dois episódios dirigidos por atrizes hollywoodianas, Kristen Stewart e
Maggie Gyllenhaal, com destaque para essa última, estreando atrás das câmeras e
responsável pelo melhor episódio da coletânea, em minha opinião.
Notam-se curtas que vão por um
caminho mais poético, enquanto outros seguem mais estritamente a estrutura
narrativa, com uma oscilação na qualidade, como sempre ocorre em filmes deste
tipo. É o que pretendo analisar rapidamente a seguir, sempre aludindo ao curta
pelo diretor, pois a própria Netflix, na apresentação inicial do material, não
dá ênfase a um eventual título, que aparece somente ao final, nos créditos.
O primeiro curta, dirigido pelo cineasta francês Ladj Ly, mostra um drone, manipulado por um garoto negro,
pelos subúrbios de Paris, em sobrevoo que serve para caracterizar a nova vida nas
ruas, imposta pelo vírus. Esse episódio, com poderosas imagens panorâmicas,
encontra um interessante contraponto no décimo
sétimo, da iraniano-americana Ana Lily Amirpour, com narração de Cate
Blanchett, em que uma ciclista, a própria diretora, circula por uma desértica
Los Angeles, em um retrato do silêncio que reina na meca do cinema mundial –
teatros fechados, a Calçada da Fama sem ninguém tirando fotos, o trânsito
desengarrafado. Se no começo da pandemia todos são atingidos, como se vê no
diálogo poético estabelecido entre o primeiro e o último episódios, obviamente que,
com o passar do tempo, as camadas sociais vulneráveis são as que mais sentem os
efeitos da situação atípica.
Falando em elementos poéticos, o terceiro curta segue esse caminho, com a
norte-americana Rachel Morrison declamando um poema para seu filho de cinco
anos. Desta maneira, o pequeno filme funciona como um registro, para que o
futuro adulto possa ver como a sua subjetividade infantil encarou aquele
momento tão extraordinário.
Antes, no segundo episódio, Sorrentino encena um encontro inusitado,
sarcástico e ambíguo, entre o Papa Francisco e a Rainha Elizabeth II, em alusão
direta à estrutura dialogada de Dois papas,
de Fernando Meirelles, também disponível na Netflix. A curiosidade é que as
duas personagens são “interpretadas” por bonecos, dentro da ordem de usar
somente os objetos e as ferramentas disponíveis para a gravação. Mesmo espírito
que anima o quinto, ambientando em
Lisboa, do zambiano-galês Rungano Nyoni, ao colocar na tela conversas por meio de
aplicativos, em um episódio inexplicável e confuso, de longe o mais dispensável
da antologia – pode pular sem medo, ou aproveitar para ir no banheiro ou tomar
água (o que eu fiz).
Outros que não me agradaram muito
são o oitavo, da japonesa Naomi
Kawase, que foge do formato narrativo tradicional, ao seguir pelo caminho
poético; o décimo quarto, de Kristen
Stewart, que faz uma mulher insone por causa do estado de coisas no mundo e de
um grilo que a incomoda; e o décimo
sexto, do igualmente chileno Sebastián Lelio, que causa estranheza, ao dar
uma forma de musical ao seu curta.
O quarto episódio, do também produtor Larraín, oferece a história de
um idoso que busca o contato com uma antiga namorada, por videochamada, e que
parece ir por um lado, mas dá uma guinada, desconcertando o espectador, que
fica entre a surpresa e o riso. É um dos melhores episódios, ao lado do décimo, dirigido por Maggie Gyllenhaal,
único que toma o rumo da ficção científica, ao criar um mundo distópico
dominado pelo vírus – aqui também, como em um dos episódios de Antologia da pandemia, há a presença de
uma encomenda que chega pelos Correios, algo comum em um mundo em que comprar
em lojas físicas tornou-se algo arriscado. Essas duas histórias são das maiores
em extensão, permitindo reviravoltas e um maior desenvolvimento das personagens.
O sexto, da mexicana Natalia Beristáin, é angustiante, ao trazer uma
menina sozinha, executando todas as tarefas da casa. O que houve? Seus pais
morreram? Saíram em busca de comida, em um mundo dominado pelo caos, e não voltaram?
O espectador, aflito, fica sem saber dos fatos que levaram àquela condição de isolamento
e solidão, enfim amenizada na conclusão.
Outros capítulos que se destacam são
o sétimo, em que o diretor alemão Sebastian
Schipper encena um embate consigo mesmo, numa história clássica de doppelgänger (duplo; ou, no caso, triplo!),
em que se misturam humor e tensão, ao mostrar que o isolamento pode nos levar
às bordas da loucura, e o décimo segundo,
que traz indiretamente a presença nacional, pois é dirigido pelo
norte-americano Antonio Campos, filho do conhecido jornalista brasileiro Lucas
Mendes. Com toques de thriller, deixa
o público alerta até o final em aberto, que não responde às dúvidas plantadas
ao longo da narrativa de 8 minutos.
Uma característica que une alguns
episódios é a autoficção, em que o diretor conta a sua história utilizando
diretamente seus familiares para trazer dados reais (ou não) para o tecido
narrativo, com resultados sensíveis. É o caso do nono, do escocês David Mackenzie; do décimo terceiro, do sino-canadense Johnny Ma; e do décimo quinto, da diretora britânica de
origem indiana Gurinder Chadha. Já os libaneses Nadine Labaki e Khaled Mouzanar,
no décimo primeiro segmento, realizam
uma ode à imaginação, em uma situação tão dura para todos. O curta pode causar
um pouco de estranheza e até cansar, ao longo de seus 7 minutos, mas no fim um
paratexto explica o contexto da gravação e ilumina o episódio.
O cinema, desde o seu início,
apresentou-se com uma característica fundamental, que o conforma social e
artisticamente: foi sempre coletivo na criação e na recepção. Esse último
aspecto mudou desde o advento e a afirmação, em sequência, da televisão, do
videocassete, depois do DVD/Blu-Ray e, agora, do streaming (que se solidificou de vez na pandemia), equipamentos e
plataformas que foram, cada vez mais, levando a recepção do cinema para dentro
dos lares.
Feito em casa traz, inevitavelmente, uma reflexão não sobre a já
dada questão da recepção fílmica, que pode ser coletiva ou individual, mas sim
sobre a produção. Assim, qual o futuro do cinema enquanto indústria criativa
que sustenta milhares de pessoas, tendo-se no horizonte uma coletânea como essa
oferecida pela Netflix, que traz pequenos curtas com boa qualidade, filmados individualmente
ou com equipes reduzidíssimas, com parcos recursos e sem efeitos especiais de
grande monta?
Se a literatura, de quem o cinema
é primo-irmão, se constitui como uma arte em que a escrita se dá sozinha, assim
como a leitura, a possibilidade do fim do cinema como experiência coletiva, em
sua produção e recepção, é assustadora, pois aniquilaria o caráter de
sociabilidade e comunhão que ele “pegou emprestado” de outro parente próximo, o
teatro. No meu caso específico, posso afirmar que estou com saudades de ver uma
película na telona, em uma sala cheia de desconhecidos, até que subam os
créditos (demonstração efetiva de quantos profissionais estiveram envolvidos na
produção), os quais avisam que daqui a pouco é hora de, que pena!, voltar para o
mundo lá fora.
A tecnologia domina a vida das
pessoas, transformando-as em cineastas em potencial, já que todos carregam um
celular com câmera de última geração na palma da mão. O tempo vai dizer se isso
é bom ou ruim para o futuro do cinema, que parece estar numa encruzilhada, sem
saber para onde vai. Na verdade, estamos todos, em 2020, sem norte e com
perspectivas negativas a partir do panorama que se desenha: crise, recessão,
diminuição das liberdades. Só nos resta aguardar os próximos capítulos.
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