22 setembro, 2020

Uma segunda antologia da pandemia: de novo, o cinema sob o domínio do vírus

Mauro Nicola Póvoas



 

Nestes tempos pandêmicos, volto a abordar um filme sobre o coronavírus, que se alastra pelo mundo neste 2020, e teima em não ir embora. Falei na outra frase em “filme”, mas não sei se o termo correto é este, talvez fosse série. Quem me conhece sabe que não gosto muito de séries, pouco vejo e quase nada sei sobre elas, e o blog se determina a falar de filmes, não de séries, então fiquei um tempo matutando se deveria escrever ou não sobre Feito em casa (Homemade), que está disponível na Netflix desde 30 de junho de 2020.

Mas enfim, como podem ver, ganhou a ideia de que se trata de um filme em episódios, assim como Antologia da pandemia, por mim aqui comentado em agosto, embora a Netflix venda a coisa toda como uma série. Tanto assim que, na plataforma, aparece um “Volume 1”, aludindo ao fato de que em breve possa surgir uma segunda temporada, além de na descrição aparecer que os episódios podem ser assistidos na ordem que o espectador quiser, sem seguir o pré-estabelecido. Eu, no entanto, aferrado à ideia do conjunto, optei por ver na sequência.

São 17 curtas, com duração de 5 a 11 minutos, dirigidos por gente de vários lugares do mundo (chama a atenção as origens híbridas dos envolvidos, que colocam em xeque a noção de nacionalidade), projeto idealizado pelo chileno Pablo Larraín. Há uma mescla de diretores menos conhecidos com nomes importantes, como o italiano Paolo Sorrentino, Oscar de melhor filme estrangeiro por A grande beleza, todos convidados a darem as suas visões do momento, obedecendo ao isolamento social e utilizando os meios disponíveis – histórias autoficcionais, familiares como atores, câmeras de celulares, cenários extraídos das próprias casas. Chama a atenção dois episódios dirigidos por atrizes hollywoodianas, Kristen Stewart e Maggie Gyllenhaal, com destaque para essa última, estreando atrás das câmeras e responsável pelo melhor episódio da coletânea, em minha opinião.

Notam-se curtas que vão por um caminho mais poético, enquanto outros seguem mais estritamente a estrutura narrativa, com uma oscilação na qualidade, como sempre ocorre em filmes deste tipo. É o que pretendo analisar rapidamente a seguir, sempre aludindo ao curta pelo diretor, pois a própria Netflix, na apresentação inicial do material, não dá ênfase a um eventual título, que aparece somente ao final, nos créditos.

O primeiro curta, dirigido pelo cineasta francês Ladj Ly, mostra um drone, manipulado por um garoto negro, pelos subúrbios de Paris, em sobrevoo que serve para caracterizar a nova vida nas ruas, imposta pelo vírus. Esse episódio, com poderosas imagens panorâmicas, encontra um interessante contraponto no décimo sétimo, da iraniano-americana Ana Lily Amirpour, com narração de Cate Blanchett, em que uma ciclista, a própria diretora, circula por uma desértica Los Angeles, em um retrato do silêncio que reina na meca do cinema mundial – teatros fechados, a Calçada da Fama sem ninguém tirando fotos, o trânsito desengarrafado. Se no começo da pandemia todos são atingidos, como se vê no diálogo poético estabelecido entre o primeiro e o último episódios, obviamente que, com o passar do tempo, as camadas sociais vulneráveis são as que mais sentem os efeitos da situação atípica.

Falando em elementos poéticos, o terceiro curta segue esse caminho, com a norte-americana Rachel Morrison declamando um poema para seu filho de cinco anos. Desta maneira, o pequeno filme funciona como um registro, para que o futuro adulto possa ver como a sua subjetividade infantil encarou aquele momento tão extraordinário.

Antes, no segundo episódio, Sorrentino encena um encontro inusitado, sarcástico e ambíguo, entre o Papa Francisco e a Rainha Elizabeth II, em alusão direta à estrutura dialogada de Dois papas, de Fernando Meirelles, também disponível na Netflix. A curiosidade é que as duas personagens são “interpretadas” por bonecos, dentro da ordem de usar somente os objetos e as ferramentas disponíveis para a gravação. Mesmo espírito que anima o quinto, ambientando em Lisboa, do zambiano-galês Rungano Nyoni, ao colocar na tela conversas por meio de aplicativos, em um episódio inexplicável e confuso, de longe o mais dispensável da antologia – pode pular sem medo, ou aproveitar para ir no banheiro ou tomar água (o que eu fiz).

Outros que não me agradaram muito são o oitavo, da japonesa Naomi Kawase, que foge do formato narrativo tradicional, ao seguir pelo caminho poético; o décimo quarto, de Kristen Stewart, que faz uma mulher insone por causa do estado de coisas no mundo e de um grilo que a incomoda; e o décimo sexto, do igualmente chileno Sebastián Lelio, que causa estranheza, ao dar uma forma de musical ao seu curta.

O quarto episódio, do também produtor Larraín, oferece a história de um idoso que busca o contato com uma antiga namorada, por videochamada, e que parece ir por um lado, mas dá uma guinada, desconcertando o espectador, que fica entre a surpresa e o riso. É um dos melhores episódios, ao lado do décimo, dirigido por Maggie Gyllenhaal, único que toma o rumo da ficção científica, ao criar um mundo distópico dominado pelo vírus – aqui também, como em um dos episódios de Antologia da pandemia, há a presença de uma encomenda que chega pelos Correios, algo comum em um mundo em que comprar em lojas físicas tornou-se algo arriscado. Essas duas histórias são das maiores em extensão, permitindo reviravoltas e um maior desenvolvimento das personagens.

O sexto, da mexicana Natalia Beristáin, é angustiante, ao trazer uma menina sozinha, executando todas as tarefas da casa. O que houve? Seus pais morreram? Saíram em busca de comida, em um mundo dominado pelo caos, e não voltaram? O espectador, aflito, fica sem saber dos fatos que levaram àquela condição de isolamento e solidão, enfim amenizada na conclusão.

Outros capítulos que se destacam são o sétimo, em que o diretor alemão Sebastian Schipper encena um embate consigo mesmo, numa história clássica de doppelgänger (duplo; ou, no caso, triplo!), em que se misturam humor e tensão, ao mostrar que o isolamento pode nos levar às bordas da loucura, e o décimo segundo, que traz indiretamente a presença nacional, pois é dirigido pelo norte-americano Antonio Campos, filho do conhecido jornalista brasileiro Lucas Mendes. Com toques de thriller, deixa o público alerta até o final em aberto, que não responde às dúvidas plantadas ao longo da narrativa de 8 minutos.

Uma característica que une alguns episódios é a autoficção, em que o diretor conta a sua história utilizando diretamente seus familiares para trazer dados reais (ou não) para o tecido narrativo, com resultados sensíveis. É o caso do nono, do escocês David Mackenzie; do décimo terceiro, do sino-canadense Johnny Ma; e do décimo quinto, da diretora britânica de origem indiana Gurinder Chadha. Já os libaneses Nadine Labaki e Khaled Mouzanar, no décimo primeiro segmento, realizam uma ode à imaginação, em uma situação tão dura para todos. O curta pode causar um pouco de estranheza e até cansar, ao longo de seus 7 minutos, mas no fim um paratexto explica o contexto da gravação e ilumina o episódio.

O cinema, desde o seu início, apresentou-se com uma característica fundamental, que o conforma social e artisticamente: foi sempre coletivo na criação e na recepção. Esse último aspecto mudou desde o advento e a afirmação, em sequência, da televisão, do videocassete, depois do DVD/Blu-Ray e, agora, do streaming (que se solidificou de vez na pandemia), equipamentos e plataformas que foram, cada vez mais, levando a recepção do cinema para dentro dos lares.

Feito em casa traz, inevitavelmente, uma reflexão não sobre a já dada questão da recepção fílmica, que pode ser coletiva ou individual, mas sim sobre a produção. Assim, qual o futuro do cinema enquanto indústria criativa que sustenta milhares de pessoas, tendo-se no horizonte uma coletânea como essa oferecida pela Netflix, que traz pequenos curtas com boa qualidade, filmados individualmente ou com equipes reduzidíssimas, com parcos recursos e sem efeitos especiais de grande monta?

Se a literatura, de quem o cinema é primo-irmão, se constitui como uma arte em que a escrita se dá sozinha, assim como a leitura, a possibilidade do fim do cinema como experiência coletiva, em sua produção e recepção, é assustadora, pois aniquilaria o caráter de sociabilidade e comunhão que ele “pegou emprestado” de outro parente próximo, o teatro. No meu caso específico, posso afirmar que estou com saudades de ver uma película na telona, em uma sala cheia de desconhecidos, até que subam os créditos (demonstração efetiva de quantos profissionais estiveram envolvidos na produção), os quais avisam que daqui a pouco é hora de, que pena!, voltar para o mundo lá fora.

A tecnologia domina a vida das pessoas, transformando-as em cineastas em potencial, já que todos carregam um celular com câmera de última geração na palma da mão. O tempo vai dizer se isso é bom ou ruim para o futuro do cinema, que parece estar numa encruzilhada, sem saber para onde vai. Na verdade, estamos todos, em 2020, sem norte e com perspectivas negativas a partir do panorama que se desenha: crise, recessão, diminuição das liberdades. Só nos resta aguardar os próximos capítulos.

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