Daniel Baz dos Santos
Com a recente confirmação por parte de John Carpenter de que a refilmagem de Enigma de outro mundo (1982) está em andamento, decidi rever O monstro do ártico (1951), de Christian Nyby e Howard Hawks, obra na qual a película da década de oitenta se baseou. Numa primeira assistida, é difícil ir muita além da leitura canônica: O monstro do ártico é, sem qualquer intenção de disfarce, um filme macarthista. Sua estrutura narrativa está soterrada pelo ideal alegórico que anseia alertar a população estadunidense a respeito da ameaça comunista, postura que está em outras obras da mesma década, sendo problematizada, no mesmo ano, pelo clássico O dia em que a terra parou (1951), de Robert Wise, e reforçada pela antológica ficção científica Vampiros de almas (1957), de Don Siegel.
No entanto, a mimese ficcional é uma
atividade desviante, repleta de possibilidades refratárias (alegóricas,
simbólicas, afetivas, ideológicas) que costumam se embaralhar dentro das
inúmeras tensões que entram em jogo durante a configuração formal, muitas vezes
à revelia do indivíduo que a idealizou. Ao engajar-se na produção do discurso
estético, o cineasta, munido das contradições próprias do material expressivo –
contaminado por suas pulsões inconscientes, por seus cacoetes retóricos, pelos
modelos discursivos, pelos padrões culturais e pelas inúmeras potências
desconhecidas de seu próprio imaginário, ainda em estado de latência – pode produzir,
junto daquilo que deseja nos apresentar, a desfiguração de seu próprio
discurso. Em outras palavras, é possível ler muitas obras artísticas a
contrapelo, na contramão daquilo que seus realizadores quiseram dizer, validando
conjecturas que se movem na direção oposta de suas reais intenções, que se contrabandeiam
para dentro da estrutura narrativa e corroem toda pretensão de unidade na visão
de mundo exibida. Experimentem, por exemplo, assistir aos filmes da série Velozes e furiosos procurando elementos
para uma crítica às convenções do que construímos culturalmente como “masculinidade”.
É um prato cheio.
Tentemos o mesmo exercício em O monstro do ártico, escavando as
ranhuras no discurso da obra, lendo suas fendas e contradições, visto que, ao
rever o filme (e esta é a minha terceira ou quarta vez), novas possibilidades
de interpretação se desvelam para além de sua alegoria central. Comecemos pelo
seu enredo: uma equipe da força aérea norte-americana, sediada no Alasca, é
incumbida de investigar um acidente ocorrido próximo a uma estação científica localizada
duzentos quilômetros ao norte. Com a ajuda dos pesquisadores reunidos no local,
liderados pelo Dr. Carrington, e acompanhados pelo jornalista Scotty, os
militares encontram uma nave extraterrestre submergida no círculo polar ártico.
Depois de destruir o que sobrara do veículo interplanetário, a comitiva
descobre um alienígena congelado sob a neve e o levam, preso no bloco de gelo,
para a base.
O encontro entre cientistas e
militares nos momentos iniciais do filme é fundamental para que entendamos as
contradições éticas e ideológicas expostas por ele. As interações entre os
grupos são representadas pelas figuras do Dr. Carrington, quem está no comando
da comitiva, já que aquela é sua estação de estudos, e pelo capitão Hendry, que
não esconde seu desdém pelos pesquisadores, alegando que eles passam o dia
“procurando o rabo de ursos polares”, ou que, quando interessados por algum
assunto, lembram “crianças babando por um brinquedo novo”, comportamento
desdenhoso que é replicado pelos demais oficiais. Há uma cena, por exemplo, em
que, prestes a ouvir a explicação do que seria uma videira telegráfica (plantas
que conseguem se comunicar entre si) boa parte dos militares se retiram
desinteressados para tratar de assuntos que julgam mais importantes. Em outra,
Hendry interrompe um dos cientistas, ao não entender nada do que ele diz, julgando
mais prático apenas confiar na sua palavra.
Para traduzir em tessitura semiótica
esses elementos, a composição da tomada que nos apresenta Carrington o situa à
esquerda do plano, cujo centro é ocupado pelo complexo maquinário que ele opera
na ocasião, repleto de botões e mecanismos incompreensíveis para os
observadores ao redor. Nosso olhar é convidado a se desviar do objeto em
direção ao cientista, obrigando que sua identidade narrativa passe pela
mediação do código hermético e desconhecido da ciência, representado pelo
aparelho. Os comandos que ele dá aos indivíduos que trabalham ao seu lado
também estão repletos de um jargão ininteligível, encapsulado em falas sempre
calmas, sérias e ponderadas, atitude oposta, em todos os aspectos, à forma como
Hendry é introduzido, a saber: em uma mesa de pôquer, falando vulgaridades
enquanto se diverte com seus subordinados como se fosse um deles.
E não é somente com Carrington que o
todo discursivo do capitão entra em conflito, mas também com as expectativas do
jornalista Scotty, a quem o desejo de levar a história da invasão alienígena
para o mundo é suspenso o tempo inteiro pelo militar, ainda que a relação entre
eles seja, ao fim, marcada pela amistosidade. A partir desses elementos,
torna-se possível afirmar que um componente essencial na construção de O monstro do ártico é a disjunção intrínseca
à dinâmica comunicacional das personagens. Não há fluidez ou linearidade nas
conversas entre os grupos e, muitas vezes, dentre os indivíduos pertencentes a
um mesmo nicho. Esse ideal é expresso, por exemplo, nas constantes tentativas dos
militares em comunicar ao general Fogarty o que está acontecendo na base e
receber, em contrapartida, as orientações a respeito de como devem proceder. As
mensagens do superior chegam aos pedaços, incompletas, ou completamente alheias
à realidade do local, logo virando piada entre os demais oficiais.
Esse descompasso imanente às trocas de
informação entre os sujeitos, e a atitude segregacionista que muitas vezes as
dirige, também conduz a subtrama do romance entre Hendry e Nikki, assistente de
Carrington. A mulher o conheceu em momento anterior e, depois de uma noite
regada a bebidas e gracejos, ambos se despediram sem que a real natureza de sua
relação ficasse clara, o que faz o capitão se sentir abandonado e a secretária estranhar seu
ressentimento. Sendo assim, a comunicação entre os seres, seja na sua esfera
intelectual, seja na sua dimensão efetiva, está repleta de idissincronias que
expõem uma sociedade desregulada e fragmentada, feita de falhas interlocutórias
sistemáticas e expectativas constantemente frustradas.
Depois dos contatos iniciais entre os
envolvidos na investigação, todos se dirigem ao local do acidente para entender
o ocorrido. Quando avistam os rastros deixados pela queda do objeto não
identificado, os homens se aproximam receosos da grande marca no chão, que
indica a presença de uma aeronave dotada de formato diferente de qualquer
veículo conhecido. Aqui, as personagens se irmanam diante de índices que nenhum
deles pode interpretar, independentemente de suas formações e históricos. Isso
é transmitido em uma das cenas mais bem realizadas do filme, quando os
exploradores, para entender a dimensão e feitio do objeto, decidem se
posicionar nas bordas do buraco deixado por ele. A câmera se afasta, tornando
possível perceber que se trata de um círculo. Por esta via, a cena conflita duas
escalas distintas: a humana e a extraterrena; sendo que aquela, apequenada e
hesitante, não consegue transfigurar/traduzir o impacto causado por esta.
Estamos diante, portanto, de novo descompasso, que estará na raiz do medo
sentido pelos humanos, notadamente dos militares que desejam destruir o disco
voador o mais rápido possível.
Além disso, opera aqui outro campo
semântico. As personagens ficam em roda e abrem os braços, mas suas mãos não se
tocam. Há um lacuna discreta, mas decisiva, entre seus corpos. Nesse sentido,
se, em uma camada, a sequência sugere uma possível comunhão entre os de cá
(terráqueos), contra os de lá (alienígenas) em outra, a disposição dos
indivíduos em cena relembra as dissidências insolúveis entre eles. A força
deste momento tão decisivo só é possível graças às possibilidades estéticas da
neve, que possibilita aos demais componentes visuais emergir na forma de
perturbação em sua monotonia branca e regular, espécie de tábula rasa para os conflitos
que interessam ao enredo.
A dimensão climática no filme,
contudo, assumirá caráter ainda mais dramático. Para entendermos esse aspecto,
é necessário situar os desdobramentos da trama. Após levar o alienígena para a
base, o soldado responsável por vigiá-lo esquece um cobertor elétrico ligado
sobre ele, o que derrete o bloco de gelo no qual a criatura se encontrava e permite
que ela fuja para fora do complexo científico. A partir de então, todos os
problemas de comunicação já anunciados se projetam nas interações dos sujeitos com
o espaço ao redor. A segregação aumenta consideravelmente, com agremiações se
formando em cômodos distintos, projetos secretos sendo implementados,
informações mantidas em sigilo e portas sendo fechadas ou transpostas à força. Nesse
sentido, a invasão deixa de ocorrer apenas entre a criatura do lado de fora e
os seres dentro da base, mas também no interior da própria comunidade humana.
A desconfiança e a paranoia são
evidenciadas em mais de uma oportunidade, ainda que não tenham aqui a mesma relevância
que demonstrarão na refilmagem de John Carpenter. Contudo, como ocorre na
versão de 1982, é neste ponto que o frio e a tempestade de neve constante
desempenham outro papel narrativo-expressivo. Por conta das baixas
temperaturas, dois fenômenos tomam conta das ações e da mise-en-scène. Primeiramente, as personagens entram e saem dos
ambientes, despindo ou vestindo suas roupas, o que conota a natureza
intercambiável dos papéis que elas assumem, além de ser uma espécie de metáfora
visual para as inúmeras situações de encobrimento e desvendamento que se sucedem
durante suas interações.
Além disso, na maioria dessas circunstâncias,
é necessário trancar as portas rapidamente, após o trânsito das personagens de
dentro para fora das salas e vice-versa, em ordem de evitar o frio (ou preservá-lo,
no caso do cômodo em que o alienígena é mantido no início do filme). Em todos
estes momentos, em que os humanos se engajam com energia no selamento de algum
espaço, reforça-se seu medo em relação à alteridade e ao mundo desconhecido por
eles. Evidenciam-se, assim, seus desejos isolacionistas e sua incapacidade de compartilhar
o território com alguém de origem distinta, recurso que será reutilizado (e
redimensionado) em Os oito odiados,
de Quentin Tarantino, outro manifesto a respeito das fraturas existentes na
formação estadunidense. Complementar a isso, as subsequentes aparições e
ataques do monstro ocorrem sempre nos espaços-limite dos umbrais, à beira das
portas e entradas, o que sinaliza para uma iconografia do exílio e do
estrangeiro e amplia a tensão entre o universo familiar e o outro, considerado
estranho.
Nesse ponto, os conflitos se adensam.
Os militares não conseguem conviver com os cientistas. O jornalista invoca a
liberdade de imprensa, mas não consegue divulgar sua história. As poucas ordens
do general são desobedecidas. Hendry assume de vez a autoridade que era de
Carrington. Os diretores do filme não se furtam de demonstrar as divergentes
visões de mundo dos dois contendores, cristalizando-as em frases-ideias como
“Não há inimigos na ciência, apenas fenômenos para estudar”, dita pelo
pesquisador, ou “Eu não trabalho para o mundo, mas para o exército dos Estados
Unidos”, pronunciada pelo capitão.
Essas discrepâncias de opiniões e
posturas tornam-se mais críticas ao serem retratadas por uma câmera geralmente
afastada, avessa a closes, e que
raramente se concentra em um único indivíduo. Na maior parte das cenas de
diálogos de O monstro do ártico (e
não se esqueçam de que elas dominam o filme), as personagens envolvidas se
aglomeram ao mesmo tempo dentro da tomada, recortadas geralmente na altura dos
joelhos (ou seja, ainda que os planos sejam mais abertos, eles se beneficiam daquela
naturalidade do plano americano defendida por Griffith). Há uma economia de
cortes durante os diálogos e uma ausência total de recursos como plongée e contra-plongée ou campo e
contracampo, com as réplicas e tréplicas sendo todas expostas em um mesmo take imóvel.
Dessa forma, nosso olhar é provocado a
vagar durantes as conversas, errando pelos sujeitos do discurso, observando
seus ditos, suas falas e reações, como se não houvesse um ponto único no qual
fixar nossa atenção (ambiguidade que estava no centro do cinema realista para
Bazin e que foi incorporada às convenções do cinema da era dos grandes estúdios).
Essa perturbação se manifesta na contramão do que a composição convencional da
cena pretender trespassar e corrói qualquer intento monológico por trás das
discussões empreendidas, princípio que fica evidente, e se incorpora
espontaneamente na tessitura semântica, na sequência em que os personagens definirão
o que fazer a respeito da criatura.
Nesse momento, em que os militares
decidem aniquilar o invasor, a dimensão verbal de O monstro do ártico entra em conflito com a dimensão visual, sendo
este o ápice de todo o processo de desconjunção comunicativa que comanda o
filme. No início da narrativa, quando a criatura está no bloco de gelo,
acompanhamos as descrições que os militares fazem dela submersa e criamos uma
expectativa imagética que nos é externada por meio das possibilidades e
limitações da palavra falada e reforçada pela descrição nos sinistros olhos da
criatura. Esta lacuna entre um todo dizível e outro visível, e o desconforto do
ato de olhar como contraparte do ato de se dar a ver, é estimulada pelo filme
nas aparições do monstro, sempre rápidas, em ambientes de pouca iluminação, e situadas
no fundo dos cenários e dos planos. Sua visualidade é feita de fragmentos de
elementos ditos e parcamente observados, e isso está na raiz dos conflitos
apresentados pelo filme.
Complementando esses procedimentos, antes
do confronto final, os oficiais discutem nos mínimos detalhes como o ataque
será executado. Mais uma vez, é seu enunciado oral que cria um todo visível a
partir do qual podemos nos situar e calibrar nossas expectativas. A
visibilidade da criatura está, mais uma vez, condicionada ao poder de nomeação
e descrição dos seres humanos. Coerente com isso, quando ela finalmente
aparece, a luz se apaga, visto que Carrington desligou o gerador para
protegê-lo do mecanismo elétrico preparado para abater o monstro. Para além das
questões de ordem técnica que certamente influenciaram as escolhas na
retratação do extraterrestre, a ausência de dimensão visível concreta e estável
dele culmina – novamente, a contrapelo – no processo de dominação de sua figura
operado por parte dos terráqueos.
A morte do alienígena é cruel. A ordem
é eletrocutá-lo até que não
reste nada (não deixa de ser irônico que criatura tão influenciada pelo monstro
de Karloff, no Frankenstein de 1931, pereça
vítima do elemento que deu vida ao outro). No lugar em que ele foi atingido, sobra
apenas um monte reduzido de cinzas. O filme termina, contudo, com a história de
Scotty, finalmente autorizado a transmitir por rádio a narrativa que
presenciou. O final é o trecho mais lembrado do filme, no qual o jornalista,
depois de celebrar a ação dos militares, clama: “Vigiem os céus. Continuem
olhando. Continuem vigiando os céus”. No entanto, tendo-se em conta o
escrutínio dos ruídos e as perturbações produzidos no interior da narrativa,
esta cena pode ser também lida na contramão das interpretações convencionais.
Dessa maneira, a ânsia manifesta de tornar o desconhecido visível, para poder
então dominá-lo, é sintoma de uma comunidade que não criou um espaço interno onde
a alteridade possa ser verdadeiramente vista. Nesses termos, o discurso final
reforça a univocidade, o autoritarismo, o preconceito e a xenofobia da
sociedade estadunidense, revelando, assim, os verdadeiros ideias que estão na
raiz de uma postura que se pretende nobre e bravia e que corroem a intenção
mais imediata do filme de dentro para fora. Por esta via, quando os créditos sobem,
acompanhados de uma característica marcha militar, a música já não consegue
exaltar os heróis e seus feitos, mas se converte em trilha de terror perfeita
para aquilo que suas ações realmente representam. Está construída, portanto, a
contrapelo, uma crítica ao macarthismo e aos seus valores.
***
Penso em terminar este texto no parágrafo anterior, mas seria desonesto. Falando direto do Brasil de 2020, destruído por Bolsonaro e pela sua incompetência de lidar com a pandemia de Covid-19 (ou com qualquer outro assunto), ainda me assombra outro momento de O monstro do ártico, não citado ao longo da análise, em que o Dr. Carrington, cansado e desanimado com a postura intolerante e negacionista dos militares, comunica que apenas a ciência pode conquistar os avanços que as armas jamais sonharão. Encerro, então, movido pelo contexto contemporâneo, com outra grande lição de O monstro do ártico: da próxima vez, não sigam o capitão.
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