27 agosto, 2020

Deus é mulher, se soubermos ver

Daniel Baz dos Santos

 



Deus é mulher e seu nome é Petúnia (2019), quinto filme da macedônia Teona Strugar Mitevska, é uma obra sobre visibilização. Para construí-la, sua realizadora se utiliza de uma forma narrativa já consagrada, em que uma personagem inusitada, de forma não planejada e sob força de circunstâncias que escapam ao seu controle, se converte em um símbolo de resistência; premissa que, apesar de calejada, já rendeu obras importantes nesta década, como Eu, Daniel Blake (2016), de Ken Loach.

Neste caso, a narrativa, inspirada em história real, acompanha Petúnia (Zorica Nusheva em excelente performance), historiadora de trinta e dois anos, desempregada, acima do peso e que vive com os pais. Sua vida muda durante um ritual religioso promovido pela paróquia onde mora, no qual uma cruz é lançada ao rio e deve ser encontrada por um grupo de homens que disputam entre si quem consegue realizar a façanha primeiro. O vencedor do desafio tem o direito de ficar com o item. Enquanto assistia à liturgia, a protagonista mergulha nas águas e logra pegar o objeto antes dos contendores masculinos. Acontece que a cerimônia é proibida para mulheres, não sendo permitido que ela fique com a cruz. Quando tentam tomá-la de si, Petúnia foge, em posse do objeto, e esconde-se em sua casa. Em seguida, é encontrada, presa e agredida de inúmeras formas pelas autoridades envolvidas no caso. Nesse processo, a protagonista se conscientiza a respeito do seu lugar no mundo e da necessidade de questionar, e mesmo derrubar, as convenções e preconceitos da sociedade na qual está inserida.

Esse ideal conflituoso é exposto já nos primeiros momentos do filme. Logo após o título ser exibido, acompanhamos os eclesiásticos em procissão, entoando um cântico sagrado que se prolonga até que a cena mude de lugar e vejamos Petúnia sob o lençol de sua cama, prestes a ser acordada por sua mãe. Essa decisão, de manter a cantoria por alguns segundos no fundo da nova sequência, representa a influência dos dogmas cristãos na vida dessas personagens e orienta, em nível simbólico, os elementos que apresentarão a protagonista e sua família.

A câmera no início do diálogo se situa debaixo do lençol da cama da historiadora, em tomada claustrofóbica que causa maior incômodo por não sabermos ao certo o que estamos observando. Este efeito é ainda mais impactante por se tratar de um território supostamente familiar à Petúnia, mas que aqui se revela um espaço de desconforto e de opressão. Além disso, o tecido que a cobre insere a temática do papel do corpo feminino na sua relação com os controles sociais impostos sobre ele, devendo permanecer oculto e impotente, a não ser que esteja subordinado aos desejos masculinos. Sendo assim, ao cobrir completamente sua personagem com o lençol e posicionar a câmera nesse universo imperceptível e intangível, que deve ser conquistado à força pelo mecanismo fílmico, quase que por meio de uma invasão, a diretora está construindo a primeira das várias tensões entre o esconder e o exibir que regem sua narrativa.

Nesta mesma sequência, por exemplo, a oscilação entre exposição e encobrimento é reforçada pelo uso da profundidade de câmera, que estabelece um jogo complexo no plano das (in)visibilidades possíveis, com a mãe e a filha se alterando no primeiro e no segundo plano, dentro e fora do campo de visão, dinâmica desdobrada em momentos atípicos, nos quais o fundo é mantido em foco e o primeiro plano não, o que nos obriga a superar uma atitude meramente contemplativa e agir ativamente, isto é, desejando ver mais e/ou melhor a expressão das personagens e questionando seu posicionamento em cena.

Esses recursos técnicos acenam para o final da sequência. A filha opta por ficar totalmente nua, em resposta à mãe, que deseja controlar o que ela veste e reprova seu peso e aparência. Logo, percebemos que adentramos em um terreno carregado de mágoas e remorsos, provenientes da história pregressa de ambas. Quando Petúnia se olha pela primeira vez no espelho, ao fim do diálogo, temos uma composição de cena que situa a figura do pai e da mãe em ambos os lados de sua imagem refletida, manifestação semiótica de que sua identidade ainda está condicionada aos processos de aproximação e afastamento que vivencia em relação aos seus progenitores.

Para completar esse tecido discursivo, construído com muito cuidado por Teona, é importante reparar também em outros dois elementos de sua composição. Primeiramente, no tamanho mínimo da fotografia que a protagonista tem sobre sua cabeceira, na qual aparece junto à mãe, e que revela o esmorecimento de uma relação que um dia pode ter sido mais afetuosa. Além disso, é importante ressaltar que, durante todo o diálogo, podemos ouvir o som alto da TV em outro cômodo da casa, o que reforça o papel das estruturas midiáticas e da opinião pública na visão de mundo dessa comunidade conservadora, que se informa exclusivamente pelos noticiários, e que contextualiza a futura função da principal coadjuvante da história: a repórter local que se interessará pelo caso de Petúnia e evidenciará as questões de gênero que são postas em movimento por suas ações.

O que nos encaminha para um dos centros narrativos e ideológicos do filme: a sequência na qual Petúnia pega o crucifixo. Antes de tratar dela, contudo, devemos atentar para aquela que a precede, na qual a protagonista participa de uma entrevista de emprego para o cargo de secretária em uma malharia. Enquanto o dono da empresa age de forma abjeta, assediando-a na mesma medida em que reprova sua idade, aparência e profissão, observamos e ouvimos as mulheres que trabalham ao fundo, confeccionado roupas de diversos aspectos. Esta ambientação funciona como um comentário subjacente aos desníveis entre as atitudes e as aparências que são permitidas aos homens e às mulheres ter, na mesma medida em que evidencia seu aspecto arbitrário e construído.

Ao deixar a entrevista, Petúnia traz em suas mãos o busto de um manequim, que roubou na saída da fábrica, objeto que, por um lado, revela seu desejo de conquistar algo além do que lhe é oferecido, mas, por outro, oferece um novo correlato sêmico para sua condição psicológica fraturada, incompleta, em permanente crise (além da evidente crítica aos padrões de beleza e de consumo que orientam a sociedade). É com este objeto em mãos que Petúnia encontra a procissão religiosa e interage com os sacerdotes e os fiéis que desejam concorrer na busca da cruz. Estes vão passando por ela de forma enérgica, impetuosa e veloz, roçando seus corpos praticamente desnudados, já preparados para saltar na água, contra o dela. Nesse ambiente, o corpo feminino se torna apequenado ou invisível, dominado ou ignorado, indicando a ausência de um território de pertença para ele na atividade coletiva que se desenrola. Os homens, por sua vez, tomam conta não apenas do espaço público, mas também exercem a desmitificação da própria vivência sagrada que deveriam protagonizar. Eles sentem frio, reclamam, têm pressa em começar o evento. A oração do pároco demora muito. Os indivíduos então, em vista disso, debocham da cerimônia, riem entre si, apressam o término da reza. Seu comportamento revela que, para eles, o evento já está destituído de qualquer profundidade moral, tratando-se apenas de competição desprovida de pretensões espirituais, fator que será essencial para entendermos a violência de gênero que se executará a seguir.

Por conta de seu alarido, o pároco se atrapalha e derruba a cruz antes do tempo, situação que dá início ao processo de destituição do objeto que se se desdobrará daqui em diante. Sem motivo aparente, Petúnia, que assistia a tudo, decide mergulhar junto com os homens e apanha o item antes deles. No fim dessa sequência, com uma câmera extremamente afastada das figuras envolvidas na cerimônia, Petúnia ousa gritar e balançar os braços, cercada de homens por todos os lados, em ordem de demandar a condecoração que merece. Seus gestos sinalizam para o pároco, mas também para nós, que acompanhamos sua façanha. Este é o primeiro dos inúmeros atos da protagonista em direção a um processo de aparecimento que, ao fim, é a tônica principal do filme.

 A submersão da cruz nas águas durante toda esta sequência, e suas diversas aparições e desaparecimentos diante de uma câmera nervosa, que tenta acompanhar as imprevisíveis evoluções do objeto que afunda e emerge diversas vezes, se relaciona, nesse sentido, com o momento vivido pela protagonista, já que, nessa cena, ela está dando início à sua jornada de visibilização. Com efeito, seu mergulho nas águas, seguido de sua emersão em posse do item, se irmana com essas performances de aparição e desaparecimento que conduzem toda a trama. A própria cruz será constantemente ocultada e revelada em contextos diversos da película, sendo colocada debaixo da cama de Petúnia, entrando e saindo de sua mochila, de dentro do cofre na delegacia, em situações geralmente regidas pelo desejo das demais personagens de ver ou mesmo tocar a peça sacra.

Na maior parte dos casos, estas interações se dão após a captura de Petúnia, nas cenas que se passam dentro da delegacia, ambiente no qual se desenrola a maior parte do filme. É nesse ponto que a protagonista se converte em uma espécie de Antígona às avessas, pondo em choque a lei dos homens e as leis espirituais. Quando perguntados sobre os crimes que Petúnia cometeu, as autoridades são unânimes em dizer que ela não está presa. Contudo nenhuma delas permite que ela volte para casa, nem consegue explicar do que ela é acusada. Depois de inúmeras situações com ecos kafkianos, quando finalmente lhe é outorgada a libertação, os crentes que perderam a disputa pela cruz, fanáticos religiosos, não permitem que ela deixe a delegacia. Entre agressões físicas e verbais, um balde de água é lançado contra seu corpo. A água, elemento associado ao seu renascimento, torna-se a arma do patriarcado contra sua imagem subversiva. Em uma sociedade dominada por homens, os ícones podem ter seu sentido integralmente deturpado por eles. A condição da historiadora é, portanto, regida por uma força maior, um aprisionamento de ordem moral, não escrito nem explicitado em detalhes, mas que têm mais força do que qualquer estrutura de direito.

É aqui que tem destaque a figura de Slavica, jornalista interessada no caso de Petúnia e que, apesar de certos exageros em suas falas muito expositivas e de uma composição estereotipada por parte da atriz Labina Mitevska, evidencia essa estrutura patriarcal, responsável pelos impedimentos a que Petúnia é submetida. Além disso, a repórter deve enfrentar também, em diálogos que mantém pelo telefone celular, as consequências de um ex-marido relapso e ausente em relação à filha, e de um chefe que não vê relevância em contar a história de Petúnia. Não é por acaso que, por inúmeras vezes, a câmera do cinegrafista que a acompanha se transforma na própria câmera responsável por apresentar a trama do filme, em um desejo manifesto de estreitar as fronteiras entre o discurso jornalístico, e suas ambições mais imediatas e empenhadas, e o discurso cinematográfico.

Antes de terminar este texto, li algumas críticas que consideraram problemática a falta de uma clara motivação para a protagonista pular na água em busca da cruz e, apesar de concordar que esta atitude seja, de fato, casual, não a considero um sintoma de que o filme seja mal resolvido, de acordo com o que estas mesmas leituras apontaram. Tendo uma cronologia clara do início ao fim, Deus é mulher e seu nome é Petúnia se nega, contudo, a construir uma causalidade bem definida. Isso é necessário, pois Petúnia desenvolve sua motivação no percurso da sua história, entendendo o que seus atos querem realmente dizer conforme os episódios avançam. Os espectadores, por sua vez, ao acompanhar sua construção, se constroem junto com ela, preenchendo as lacunas morais e sociais que seu percurso deixa em aberto. Entender o porquê das ações de Petúnia é fundamental no movimento de torná-la visível. É sobre isso que esta obra fala.

O que nos leva à primeira tomada do filme, posicionada antes do título, em que vemos Petúnia a distância, em plano abertíssimo, sobre uma piscina, como se caminhasse acima das águas. A personagem está completamente exposta, integralmente emersa, em pose frontal que encara nosso olhar diretamente. Nós, contudo, precisamos forçar a visão para conseguir fitá-la de um ângulo tão afastado. Durante todo o filme, é preciso manter este esforço, ativo, consciente e trabalhoso, de busca ininterrupta e profunda, se quisermos dar a ver os dramas vividos pela protagonista e das mulheres que, como ela, sofrem as agruras de viver em uma sociedade patriarcal e falocêntrica como a nossa.

19 agosto, 2020

"Antologia da pandemia" acerta ao ir de 13

Mauro Nicola Póvoas

 


Foi lançado nas plataformas digitais (Looke, Now etc.), no início de agosto, talvez o primeiro filme a abordar o coronavírus e o estrago que ele tem feito ao redor do mundo, seja com mortes, seja no psicológico de todos nós, que estamos convivendo com o distanciamento social há já tantos meses, sem saber quantos mais vêm pela frente: trata-se de Antologia da pandemia, produzido por João Pedro Fleck, Nicolas Tonsho, João Pedro Teixeira e Fernando Sanches, todos vinculados ao Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa), que recentemente teve a sua 16ª edição, em versão on-line.

A película aposta na composição em episódios, recurso clássico em narrativas cinematográficas de terror, como em Na solidão da noite (1945, com dois segmentos dirigidos pelo brasileiro Alberto Cavalcanti), Histórias extraordinárias (1968, com direção de Federico Fellini, Louis Malle e Roger Vadim, baseado na obra de Edgar Allan Poe) ou Creepshow I e II (1982 e 1987, por George A. Romero e Michael Gornick, respectivamente, a partir de Stephen King). Como costuma acontecer neste tipo de filme, em Antologia da pandemia o resultado é desigual, com episódios empolgantes e/ou fascinantes pelas questões que suscitam, e outros que pecam por seus atributos técnicos e/ou estéticos.

É mesmo difícil manter uma regularidade ao longo de treze curtas – sete brasileiros, seis estrangeiros –, os quais encontram a sua unidade temática na pandemia que assola o mundo ao longo deste inesquecível e inacreditável 2020. Não custa dizer que o número de episódios não está ali à toa, pois o treze traz consigo uma carga supersticiosa relacionada ao azar e uma simbologia política no Brasil. A sequência dos episódios, seus diretores e suas nacionalidades, em ordem de entrada, é a seguinte:

1.       Quarentena sem fim, de Fabrício Bittar (Brasil)

2.       O último dia, de Guillermo Carbonell (Uruguai)

3.       Estúpidemia, de Junior Larethian (Brasil)

4.       Baldomero, de Martín Blousson (Argentina)

5.       Jérôme: um conto de Natal, de Beatriz Saldanha (Brasil)

6.       Eclosão, de Alejo Rébora (Argentina)

7.       A mancha na parede, de Daniel Pires (Brasil)

8.       Pique-esconde macabro, de Julio Cesar Napoli Filho (Brasil)

9.       Barata, de Emerson Niemchick (EUA)

10.   Às vezes ela volta, de Matheus Maltempi (Brasil)

11.   Desenterrado, de Karl Holt (Reino Unido)

12.   Psicopompo, de Giordano Gio (Brasil)

13.   Roleta-russa, de Andreas “splash” Kyriacou (Chipre)

Em quase todos, há o uso de ferramentas de comunicação, como Skype, WhatsApp e programas de videoconferências, evocando o “novo normal” dos tempos de hoje, em que reuniões de trabalho, festas de aniversário, aulas ou uma simples conversa para matar saudades de um amigo ou parente precisam ser mediadas pelo computador ou celular. Em sua maioria, os personagens estão ou sozinhos em suas casas, ou com seus animais de estimação, a maioria sem companhia humana, o que leva à irritação, à desmedida e à insanidade mental, elementos que temperam as histórias.

Nota-se a presença de subgêneros tradicionais do terror, em enredos permeados pela doença ameaçadora e pela tecnologia que deveria ser um bálsamo: zumbis, fantasmas, ficção científica, bonecos assassinos, loucura, pacto com o diabo, metamorfose. Chama a atenção, também, o viés distópico de certos episódios, o que aumenta a letalidade do vírus e a sua capacidade de disseminação, já grandes na vida real, com o fim de maximizar o terror – assim, observam-se sintomas como estupidificação (em “Estúpedemia”), animalização (em “Eclosão”) e zumbificação (“Às vezes ela volta”), ou maneiras de transmissão devastadoras, não só pelo contágio interpessoal, mas também pela Internet, por meio de áudios ou lives, em “Quarentena sem fim” e em “Estúpedemia”. O caráter apocalíptico fica claro no primeiro episódio, onde a epidemia ainda continua, em março de 2022, ou em “O último dia”, em que o lockdown dura já exatos 2.153 dias (cerca de seis anos). Essa segunda, produção uruguaia, embora pequena em sua duração, é impactante em seu desfecho, ao estabelecer uma interessante oposição: dois objetos de baixa tecnologia (os quais sempre ganham importância nos momentos em que a sociedade entra em falência, algo comumente retratado na ficção científica), o livro que a menina lê, O Pequeno Príncipe (El Principito, na tradução em espanhol), e o rádio de pilha que o menino escuta versus o objeto altamente sofisticado, do ponto de vista técnico, que surpreendentemente aparece ao final.

Um aspecto louvável da coletânea é trazer o momento político do Brasil, devastado pelo governo inepto que desde 2019 afunda a nação, com descaso pela pandemia, pelo meio ambiente, pela educação, pela cultura, pela verdade, por tudo, enfim. Isso aparece em “Estúpidemia” e “Psicopompo”, em minha opinião dois dos episódios mais deficientes: o primeiro, pela atuação pouco convincente dos atores; o segundo, pela abordagem da questão da loucura paulatina causada pelo isolamento, tema fundamental no contexto, que poderia ser melhor explorado. Entretanto, paradoxalmente, ambos são certeiros ao lembrarem o contexto político atual: o fascismo que campeia no Brasil (no 3), a aceleração sem freio do número de mortos (retratada na voz que não para de contabilizar os que foram derrotados pela doença, no 12), os panelaços que cobriram o país em determinado momento de 2020 (igualmente no 12).

Em agosto, quando escrevo, parece que as pessoas cansaram de protestar e perderam sua capacidade de indignação, abatidas pela permanência do “presidente” no cargo, a que se aferra não para governar tendo em vista a população em geral, mas para proteger a si e a seus familiares. E tudo isso com a complacência da grande mídia, das elites e do empresariado, que por vezes até atacam o conservadorismo atroz dos mandatários encastelados no Palácio do Planalto. Todavia, ao fim e ao cabo, esses grupos não querem o impedimento do governo, porque na economia o trabalho sujo que lhes convém – privatização desenfreada, aceleração de reformas, precarização da vida dos mais necessitados – está sendo feito por Paulo Guedes e companhia.

Por sua vez, um elemento que alivia o clima pesado da película é o humor, voluntário ou não, como nos bonecos que ganham vida em “Baldomero” e “Pique-esconde macabro”, o que cria uma aura de “terrir” nos episódios: no primeiro citado, há a dúvida entre o caráter do boneco, se do “mal” ou do “bem”; já no segundo, o fato de a boneca ter sido adquirida pelo Mercado Livre imediatamente cria laços com o espectador, pois quem não comprou por essa plataforma durante a quarentena? Mais um exemplo de válvula de escape é a presença dos gatos em “Jérôme: um conto de Natal”, embora aqui essa suposta leveza se mescle a um pacto com o diabo, o que gera surpresa e estranheza. Aliás, como dito anteriormente, gatos e cachorros aparecem em outros episódios, como no terceiro e no décimo segundo, fazendo companhia às pessoas isoladas.

Entre sugestionar ou mostrar, dicotomia observada ao longo da história do cinema de horror, Antologia da pandemia apresenta bons exemplos dos dois caminhos. Um dos melhores episódios, “Às vezes ela volta” (título que lembra um conto de Stephen King, “Às vezes eles voltam”), aborda um tema que, por excelência, contém conteúdo explícito: zumbis. Aqui, no entanto, nada é mostrado, pois tudo acaba sendo imaginado pelo espectador, por intermédio das mensagens de WhatsApp trocadas pela protagonista, sua irmã e sua mãe. Já os curtas “A mancha na parede”, “Barata” e “Desenterrado” ocupam-se em maior medida com o susto final e o medo, sensação fundamental no gênero. “A mancha na parede” e “Desenterrado” constroem muito bem a escalada de tensão, com personagens que, isolados, parecem perder o senso, criando uma atmosfera fantástica, em que já não se sabe o que é realidade e o que é imaginação. A produção norte-americana “Barata” traz uma cena final tétrica, que lembra aquela passagem de Pulp fiction, em um porão de loja, ou filmes tipo O albergue e Jogos mortais.

Outro curta que se destaca é o décimo terceiro e último, “Roleta-russa”. O episódio que encerra a antologia é ambientado em uma sala de videoconferência, com homens e mulheres interagindo a distância, em uma brincadeira macabra para ver quem pega o coronavírus primeiro. As pessoas mostram-se com os nervos à flor da pele, em decorrência da incerteza trazida pela pandemia, tão desnorteadas que chegam ao ponto de jogarem com a morte e a doença – o ser humano, pouco resistente, confrontado com situações extremas, deixa-se entregar facilmente ao acaso ou à ira.

Antologia da pandemia é uma montanha-russa de emoções, oferecendo visões ora trágicas, ora cômicas do momento peculiar pelo qual todos estamos atravessando. A par das limitações técnicas e físicas de uma produção feita por cada um dos diretores a partir de sua situação particular de isolamento, o conjunto merece ser visto, mesmo por quem não aprecia o gênero horror, pois é, desde já, um documento histórico que dá conta, para as gerações futuras, do que se passa hoje no mundo e em especial no Brasil, afinal, o que foi mesmo que fizemos para merecer, ao mesmo tempo, a Covid-19 e o “presidente” Bolsonaro?

Em meio à pandemia, um retorno

Apaixonados por cinema que somos, tentar escrever sobre filmes é quase um caminho natural. A ideia acalentada de um blog finalmente veio à tona em março de 2015, com o nome “Cinema em Prosa”, página que conseguimos manter com certa regularidade até outubro de 2016. Porém, por motivos alheios à nossa vontade, paramos de publicar. Como são textos que vêm à tona nos intervalos da atividade principal que desempenhamos (professores e pesquisadores de Literatura), acabou que o blog foi sendo deixado de lado. Quatro anos depois, vamos tentar de novo, pois somos teimosos.

Daniel continuou a escrever regularmente sobre o assunto, até porque tinha uma coluna semanal de crônicas no caderno cultural “O Peixeiro”, do jornal Agora, de Rio Grande, que infelizmente parou de circular em março de 2020, e muitas vezes aproveitava o espaço para falar de cinema.

Mauro escreveu muito pouco sobre cinema neste período, mas continuou vendo filmes “adultos” dentro do possível. Já filmes infantis, viu quase de tudo, levando em conta a convivência com os filhos Ramiro e Bibiana, hoje com 6 e 4 anos – pensando bem, ter parado em 2016 é sintomático, pois é o ano em que nasceu a Bibiana.

Enfim, com pandemia ou não, o tempo continua curto. Mas agora, em agosto de 2020, vamos empreender uma nova tentativa de colocar no ar textos que estão guardados nas pastas do computador, em um blog repaginado – estamos no Facebook também. A intenção é colocar pelo menos dois textos por mês, um de cada autor, sejam inéditos escritos recentemente ou não, sejam coisas já publicadas em outros espaços, mas que merecem ser (re)lidas. A meta tornada pública tem a intenção de forçar a regularidade da publicação, mas se tem toda a consciência que pode dar tudo errado, e a pressão só servir, mesmo, para a inação. A ver.

Neste blog repaginado, por vezes buscaremos o caminho da crítica mais alentada de um filme e por vezes praticaremos uma mirada panorâmica, comentando duas ou mais produções cinematográficas em um único texto.

Na estreia, em tempos pandêmicos, um filme sobre a pandemia.

Dito isto, só resta desejar uma boa leitura.

Daniel e Mauro