11 novembro, 2022

Selvageria relatada

 

Mauro Nicola Póvoas

 



Em Relatos selvagens (Relatos salvajes, 2014), vê-se mais uma vez a qualidade técnica e estética que o cinema argentino alcançou. A partir da produção surgida de 2000 para cá, pode-se falar de um “Novo Cinema Argentino”, que tem na figura onipresente de Ricardo Darín a sua pedra de toque – até um Oscar os hermanos ganharam nesse período, com O segredo dos seus olhos em 2010 (Darín é o ator principal, óbvio). Da Argentina, parece emanar um frescor temático que alcança a subjetividade de cunho filosófico-existencial que faz todo o grande Cinema (você sabe o que estou falando – Fellini, Bergman, Scola, Kubrick, Lynch, Allen etc.), não o simulacro que inunda os shoppings toda a semana. Dito isso, queria fazer uns comentários sobre os seis relatos selvagens apresentados por Damián Szifrón.

Nesse conjunto sêxtuplo de histórias, observa-se que não há nenhuma relação aparente entre os personagens, mas a unidade temática do filme é garantida pela recorrência, nos enredos, por assuntos que giram em torno da vingança, da ira, do desajuste. Essa unidade temática é o que faz com que o filme não tenha os altos e baixos tão comuns nos filmes de episódios – a película é excitante e mantém uma espantosa regularidade, muito também devido à atuação dos atores, ao roteiro burilado e à direção segura. É também de se destacar que em nenhum dos episódios aparecem armas, que muitas vezes simplificariam e banalizariam o enredo, levando em conta o tipo de história desenvolvida. Se o filme fosse norte-americano, a presença de revólveres seria uma constância, dentro do culto às armas de fogo que os Estados Unidos empreendem mundo afora.

Na verdade, pode-se dizer que talvez seja a vingança (ou a sua faceta mais atenuada, o revide) o principal componente do cardápio, já que ela está presente em todos os seis segmentos: 1) “Pasternak” (avião); 2) “As ratazanas” (restaurante); 3) “O mais forte” (estrada); 4) “Bombita” (engenheiro); 5) “A proposta” (caseiro) (neste, a vingança está atenuada, embora se concretize ao final); e 6) “Até que a morte nos separe” (casamento). Sentimento universal e atemporal, a vingança caracteriza-se pela gana do ser humano de cobrar com juros humilhações sofridas por si ou por alguém próximo, sendo expressa constantemente na literatura e no cinema. Seja dito de passagem: quando penso em vingança, sempre me vem à mente “O barril de Amontillado”, de Edgar Allan Poe, que retrata um plano vingativo planejado cerebralmente e executado com precisão e perícia, pois que nunca será descoberto; neste sentido, o conto de Poe é a antítese das pequenas histórias da produção argentina, em que pouco é planejado com antecedência (exceção são os episódios “Pasternak” e “Bombita”), pois os instintos afloram sem quase nenhuma mediação intelectual.

Nos episódios supracitados, nota-se também a força da máquina, como no avião do episódio 1, e nos carros presentes em 3, 4 e 5; em especial nesses três últimos episódios, o automóvel constitui-se como personagem, que determina destinos, mapeia desilusões e serve de válvula de escape de uma vida robotizada e limitada. Um dos itens essenciais da sociedade de consumo, o uso do carro no filme descortina aspectos negativos dos veículos automotores: poluente, agressivo e antissocial, ocupa o espaço do humano nas cidades, sufocando, agredindo e matando, tornando a indiferença a regra geral.

Se o carro é um elemento importante para a compreensão do filme, o sexto e último episódio desmascara e ridiculariza outra instituição-símbolo da burguesia: o casamento, demonstração ritualizada de poder e riqueza das classes média e alta. A cerimônia de casamento como a alegoria da dissolução do mundo das aparências burguesas já foi tratada no cinema por Bergman, Altman e Vinterberg, por exemplo, mas aqui surge com rara e renovada maestria. A escalada vertiginosa de descobertas, xingamentos e humilhações entre noivo e noiva leva a uma redenção catártica, em meio a esperma, sangue, suor e lágrimas. É, na minha opinião, o melhor episódio do filme, juntamente com o inacreditável episódio 3, em que os dois homens protagonistas ficam reduzidos à lei do mais forte. Isolados geograficamente, perdidos em uma estrada deserta, a situação metaforiza a ausência de civilização e carinho da sociedade atual, pois os atos dos dois motoristas sucessivamente trazem consigo preconceito, rancor e raiva. Nesse episódio, verdadeira montanha-russa de emoções e agressões, não há como não lembrar o espírito de certas séries animadas clássicas, como Tom e Jerry e Papa-Léguas.

Aliás, as convenções burguesas, uma a uma, são atacadas no filme: no episódio 1, bullying e relações familiares, profissionais e afetivas se entrecruzam de forma ao mesmo tempo risível e desastrada; no 2, o representante indigesto da mistura de política e agiotagem termina da pior maneira possível; no 4, “Bombita” tem o seu “dia de fúria” (sim, a referência aqui é o filme homônimo de 1993 dirigido por Joel Schumacher e protagonizado por Michael Douglas), contra a burocracia inepta que quer controlar o cidadão, que quanto mais pacificado e humilhado melhor; ou no 5, em que nenhum dos estratos da sociedade demonstra possuir resquícios de pudor – patrões, empregados, profissionais liberais (advogados) e funcionários públicos (delegados) igualam-se, todos, na corrupção, na impunidade, na falta de moralidade e no desejo de enriquecimento rápido e fácil. Impossível não lembrar do disco Cabeça dinossauro (1986), dos Titãs, em que, igualmente, se observa o ataque a todas essas instituições – polícia, família, igreja, burocracia estatal etc.

No clássico álbum em quadrinhos O homem é bom? (Porto Alegre: L&PM, 1984), a pergunta do título tem uma resposta límpida e cristalina, ao longo de suas histórias: não, o homem não é bom, e o autor Moebius brinca com o sentido duplo da palavra – se o caráter do homem é ruim, também o gosto da carne humana não é aprazível ao paladar, conforme uma das histórias mostra. Em Relatos selvagens, a resposta, a cada momento, também vai se delineando no mesmo sentido daquele engendrado pelo desenhista francês: o homem não é bom, pois rompe o delicado e antinatural “contrato social” rousseauniano a todo momento, movido pela angústia, pela falta de ética, pela morbidez, pela violência. Inverossímil e absurdo por vezes (sem estragar a fluência da obra) na sua tragicomicidade, o filme faz com que em meio às cenas mais selvagens o riso saia incrédulo, resultado da ironia com que as situações são tratadas. A catarse, que vai se moldando ao longo de todo filme, atinge o seu auge no último episódio, com a grande cena final, que não pode ser contada para não estragar o prazer da recepção, para aquele que ainda não viu a película.

Ao fim, restamos completamente exauridos da violência que se apresenta em todo o filme, estupefatos com o fato de sermos da mesma raça das figuras ficcionais que desfilam na tela – “sim, eu poderia ter feito aquilo”, é um pensamento que vem à mente. Por enquanto não fomos nós, e a função higienizadora da arte vem à tona, mas na próxima esquina quem sabe eu ou você não caiamos na mais pura selvageria com alguém que cruze conosco. Será que o sucesso de público do filme na época do lançamento não se explica em parte pelo fato de ele desnudar o desejo do ser humano de, em certos momentos, se livrar completamente das amarras morais, físicas, comportamentais, para, livre finalmente do superego (conforme estruturado por Freud), tornar-se mais insuportável e mesquinho do que já é? Chegando então a essa situação, o único caminho é a autodestruição, fim talvez inexorável da civilização humana.

E é sobre isso que Relatos selvagens nos dá notícia.

Ascensão e declínio dos anticristos-alienígenas em uma aldeia inglesa


Mauro Nicola Póvoas

 



A minha modesta, mas honesta, coleção de DVDs e Blu-Rays anda um pouco empoeirada. Composta por filmes de minha afeição – clássicos norte-americanos e europeus, adaptações literárias, algo da produção nacional, um tanto de coisas de terror –, ela anda esquecida pela ascensão e consolidação do streaming, em especial a partir da pandemia.

De vez em quando, porém, desencavo um dos box “Obras-primas do terror”, ótima coleção da Versátil, com cada volume trazendo três DVDs, num total de seis filmes de terror clássicos, em especial da décadas de 1950-1970. O volume 1, que tenho aqui, traz produções dirigidas por Mario Bava, Roger Corman, Robert Wise, Alberto Cavalcanti, Jacques Tourneur e Wolf Rilla. Esse último, diretor alemão radicado no Reino Unido, é com certeza, dos seis, o menos conhecido, mas entrou para a história do cinema por pelo menos um filme, de origem inglesa: A aldeia dos amaldiçoados (Village of the damned), de 1960. Película direta, coesa, concisa (cerca de 75 minutos), a sua produção – cenários, locações, efeitos – é módica, embora conte com um elenco interessante, inclusive com George Sanders – ganhador do Oscar de melhor ator coadjuvante em 1951, por A malvada – fazendo o protagonista, o professor Gordon Zellaby.

A aldeia do título é a fictícia cidade britânica de Midwich, onde todos os habitantes sofrem desmaios em determinada manhã, vindo a acordar horas depois, no meio da tarde. Semanas depois, todas as mulheres férteis do lugar ficam grávidas, para alguns meses depois terem os seus bebês, todos parecidos entre si, possuidores de características como poderes paranormais, olhos esquisitos, pele e cabelos alvos[1], fios de cabelo com constituição molecular diferente, unhas mais curtas. O detalhe é que algumas mulheres nunca tinham tido relações sexuais ou estavam com o marido em viagem, o que abre para duas situações: uma, a dúvida na sociedade sobre uma possível relação às escondidas ou adúltera dessas mulheres; outra, a alusão bíblica a Maria, grávida de Jesus Cristo a partir da fecundação pelo Espírito Santo, até porque era virgem, como algumas das mulheres da aldeia do filme. O governo, temendo o alarde da população, oculta o ocorrido do restante do país, ao mesmo tempo em que tenta achar explicações e monitora casos parecidos no planeta.

A aldeia dos amaldiçoados situa-se no entrelugar entre o terror e a ficção científica (o trailer da época classifica o filme neste último gênero), inserindo-se, assim, na linhagem de filmes com invasões alienígenas produzidos em língua inglesa, iniciada nos anos 1950, no âmbito da Guerra Fria, entre os países ocidentais e a União Soviética, cujos exemplos basilares são O dia em que a Terra parou (1951), A guerra dos mundos (1953), Vampiros de almas (1956) e A bolha (1958). Todavia, embora o enredo forneça essa primeira possibilidade, a de uma investida extraterrestre[2] (metáfora da ameaça comunista-soviética que pairava sobre a América na época), surgem outras explicações divergentes sobre a origem das estranhas criaturas. Em segundo lugar, elas podem, por exemplo, ser o fruto de uma mutação genética, uma espécie de “evolução” do ser humano para esse novo patamar (aposto um café que Stan Lee viu este filme – os X-Men são de 1963...), criadas por partenogênese, um tipo de reprodução sexual em que um óvulo se desenvolve sem ter havido fertilização, comum de acontecer em plantas e artrópodes, mas não em vertebrados. Ou, ainda, terceira opção, ser o resultado da ação de um gás derivado de uma guerra química. Uma quarta possibilidade de explicação seria pura e simplesmente uma origem demoníaca das crianças, verdadeiros seres amaldiçoados (conforme aponta o título) vindos não se sabe de onde para castigar os seres humanos daquela sociedade. Seria por acaso a URSS, essa origem[3]?

O subtexto da ameaça comunista está já na cena inaugural – aparentemente prosaica, no sentido de mostrar o aspecto rural da cidadezinha – de um pastor conduzindo ovelhas. Mas pode-se pensar que o rebanho, na verdade, alegoriza as crianças, que serão caracterizadas a seguir como se fossem esses animais, portando-se como um grupo unificado e sem personalidade individual. O fato de elas possuírem sentimento coletivo, sem indícios de pessoalidade, aproxima-as do senso comum, que aponta como elementos constituintes de um país comunista a planificação e o não respeito às individualidades. A relação crianças/ovelhas fica mais óbvia ao se lembrar que o olhar dos infantes, quando seus poderes estão ativados, assemelha-se bastante aos olhos claros dos caprinos.

Um dado interessante é que o caso de Midwich não é isolado, pois são identificadas crianças semelhantes em lugares distantes ou exóticos. Dois desses eventos acontecem no mundo comunista: na fronteira da Mongólia com a União Soviética, todas as mães e as crianças foram mortas pelos pais, e nas montanhas do noroeste da URSS, elas começaram recebendo uma “educação superior”, nas palavras do militar inglês que expõe a situação, embora depois chegue a notícia de que os soviéticos destruíram o vilarejo com uma bomba atômica, para conter os pequenos, algo que o “mundo civilizado” não faria, pelo menos em um primeiro momento. O terceiro local é no norte da Austrália, em que todas as crianças misteriosamente morreram logo após nascer. Já o quarto episódio se dá no Polo Norte, onde os esquimós, como na Ásia, trucidaram as crianças louras, em tudo diferentes do biotipo local – de novo o “nós” x “eles”, pois os “selvagens” mataram-nas, os britânicos, não. Esse aspecto do contraponto entre civilização e barbárie surge na cena em que os aldeões, como em Frankenstein, querem vingar-se das crianças, linchando-as, mas são facilmente dominados por David (filho de Gordon e sua esposa, Anthea), espécie de líder do grupo.

Quem contrasta com o povo furioso do vilarejo é o professor Gordon, que com sua sofisticação intelectual, mais tarde, conseguirá vencer os poderes telepáticos das criaturas. Neste sentido, o professor, que dá aulas para os superdotados, é a pessoa esclarecida que nutre simpatia pelo senso coletivo e comunitário demonstrado pelas crianças. Na sequência, porém, Gordon sucumbe e se dá conta que só o extermínio delas, que representam o mal em seu estado mais puro, resolverá a questão e evitará que elas dominem a raça humana.

Como a solução final e radical implica a sua morte também, o professor faz um exercício para bloquear os pensamentos das crianças, imaginando um muro, pois os poderes extra-humanos delas (controle das ações de terceiros; ler pensamentos; inteligência fora do comum; crescimento físico e intelectual acelerado; pensamento conectado entre elas) descobririam o seu intento. Advém daí uma das cenas mais famosas do filme, a parede de tijolos mental que impede a visualização do plano de Gordon. Ele atinge o seu objetivo, com o final mostrando a importância dos olhos na constituição das crianças, pois são somente eles que o espectador vê, sob o fogo que a tudo consome. A ameaça comunista (ou alienígena), para o bem de todos, é detida a tempo, embora tenha causado algumas baixas no vilarejo, normais nestes casos.

O filme, passados mais de sessenta anos, continua bom. Resistiu ao tempo; um clássico, portanto. Ele se encaixa nos padrões cinematográficos da época para filmes de terror, com apenas três ou quatro mortes, sem mostrar sangue ou corpos mutilados, ou seja, nada do excesso dos filmes do gênero, que se acentuou a partir dos anos 1970. É uma produção estranhamente fria em sua abordagem, de modo que o espectador não estabeleça laços de compaixão com o destino fatal das crianças e com o fato de que, ao fim e ao cabo, um pai mata o seu próprio filho.

Cabe dizer, ainda, que A aldeia dos amaldiçoados se insere numa segunda tradição de filmes, também extensa, e bem mais perturbadora do que a listagem anteriormente relatada, aquela das películas que tratam de invasão de ETs, no influxo do pós-guerra. Essa outra linhagem é a das histórias cinematográficas que trazem adolescentes, crianças ou bebês “do mal”, filmes nem todos exatamente de terror: Os inocentes, O bebê de Rosemary, O exorcista, Cría cuervos, Colheita maldita, O senhor das moscas, A órfã, Precisamos falar sobre Kevin, A profecia[4], sendo este, talvez, o mais famoso, por abordar o tema do anticristo, entrevisto neste Aldeia.

 

Em tempo

A aldeia dos amaldiçoados, com o tempo, fruto de sua perene presença no imaginário, entranhou-se na cultura popular. Por exemplo, entre essas menções, há um episódio do seriado Os Simpsons em que crianças iguais à de Midwich assombram Springfield, e o grupo britânico de rock Iron Maiden gravou a música “Children of the damned”, presente no disco The number of the beast, de 1982, e que alude ao filme. Além disso, o original ganhou pelo menos dois filmes que dialogam diretamente com a película de 1960: A estirpe dos malditos, de 1964, e A cidade do amaldiçoados, de 1995.

Não exatamente uma continuação, A estirpe dos malditos (Children of damned), de Anton Leader, usa o mesmo mote de 1960 para contar uma outra história – embora nos créditos se aponte que o filme é uma sequência de Aldeia. À semelhança do original, os olhos das crianças brilham, além de possuírem os mesmos poderes de antes: superinteligência e a possibilidade de uma saber o que a outra pensa. Diferentemente de 1960, elas não são parecidas entre si, já que cada uma apresenta características étnicas distintas.

Agora, são seis crianças, cada uma proveniente de um lugar do mundo: Inglaterra, Estados Unidos, União Soviética, China, Índia e Nigéria, o que garante a diversidade e alude a uma fraternidade entre as nações que não se dava no mundo real, pois todas estavam envolvidas, naquele momento, com a Guerra Fria. O filme também traz um curioso embate entre duas visões dos dois protagonistas adultos: o psicólogo, mais vinculado às ciências humanas, às emoções e às sensações, e o geneticista, com seu olhar técnico sobre o corpo e sua constituição.

O roteiro apresenta as crianças de forma ambígua, pois aparentemente não são humanos, pois não têm pais, sendo talvez criados por partenogênese – termo que aparece em toda a série de filmes. Por outro lado, levanta-se a questão de que não são alienígenas ou mutantes, mas sim seres pertencentes à raça humana, sendo na verdade pessoas 1 milhão de anos mais avançadas, em relação ao presente.

Interessante notar que as crianças se escondem numa igreja (de novo, um aspecto que alude à religiosidade, como se vê subliminarmente no primeiro filme), onde a maior parte da história se desenvolve, dando a ideia de que a partir daquele lugar sagrado começariam o domínio do mundo e a sua respectiva salvação, tendo em vista a superioridade cognitiva e intelectual das pequenas criaturas. Ao fim, porém, o templo religioso não impede a aniquilação de todas as crianças, que morrem nas mãos do poder militar dos homens.

Por sua vez, o remake A cidade dos amaldiçoados (Village of the damned), dirigido por John Carpenter, traz alguns atores-símbolos do cinema de aventura e ficção, como Christopher “Super-Homem” Reeve (um de seus últimos trabalhos antes da queda de um cavalo que o deixaria tetraplégico) e Mark “Luke Skywalker” Hamill, em uma homenagem de Carpenter a esses dois gêneros, cultivados em sua paradigmática obra.

Mais ou menos seguindo o roteiro original, Carpenter faz pequenas alterações na história de 1960, com fins dramáticos, entre as quais destaco:

. Midwich agora é uma cidade norte-americana;

. o protagonista, um doutor, não estava na cidade quando do “blecaute”, como é chamado, no filme, o episódio. Um dado igual, porém, é que ele se dedicará a dar aulas às crianças, no decorrer da narrativa;

. a esposa do médico, mãe de um das crianças, se mata;

. o doutor e sua esposa não têm um filho, mas uma filha, em um protagonismo feminino do filme novecentista que não se verifica em 1960;

. a presença de uma cientista, que substitui, ao mesmo tempo, o membro do governo e o cunhado do filme original e o geneticista da “sequência” de 1964;

. não há a preocupação em se explicar tanto os fatos ocorridos, como, por exemplo, por qual motivo elas crescem tão rápido. Em todo o caso, há explicações “científicas” para o acontecimento, como a já aludida partenogênese;

. não se dá tanta ênfase às crianças de outros países, amenizando a ameaça comunista ou alienígena, elemento forte no filme de 1960. O elo interplanetário, no entanto, se dá pela aparição de um feto com aparência extraterreste, morto e guardado em formol pela cientista, numa situação pouco explicada no filme.

Há muito mais mortes sanguinolentas na refilmagem de John Carpenter – pessoas se suicidando, sendo carbonizadas ou morrendo cruelmente –, até para atender aos interesses do público da época, já habituado a filmes mais violentos. Bom exemplo é a cena do carro que bate em um muro, por influência das crianças – discreta em 1960, apresenta-se explosiva em 1995.

Outro momento que está em 1960 e se repete em 1995, é o final, demonstrando pequenas diferenças. O muro do original é substituído pela imagem de um oceano, além da presença de uma das mães na cena, o que interfere na tensão, maior no original, já que lá a disputa psicológica era somente entre o doutor/professor e as crianças.

Mais para o fim, há uma cena curiosa, que expõe a visão de Carpenter, muitas vezes crítico da sociedade norte-americana (veja-se, por exemplo, Eles vivem [They live], filmado uns anos antes, em 1987). Estou falando da bizarra sequência em que policiais, chamados para resolverem a situação, acabam se autotrucidando, visão irônica das forças estatais de segurança, aquelas mesmas que deveriam proteger os cidadãos, mas que, na cena, lutam entre si.

O filme de 1995 é bom, afinal é dirigido por Carpenter, um dos mestres do terror contemporâneo. Mas a sensação que resta, ao final, é a mesma que surge todas as vezes em vemos uma refilmagem: qual o sentido de reatualizar um clássico? Em geral, isso significa fazer um filme que será malfadado (Psicose, por exemplo) ou que não chegará no nível do original (no caso aqui em tela).



[1] Aqui, uma ambiguidade: de um lado, o filme poderia ser eventualmente apontado como racista, por colocar a etnia branca como aquela responsável por uma espécie de evolução dos seres humanos; por outro, ao colocar essas crianças brancas como más e destruidoras, o roteiro confirma aquilo que se sabe historicamente, caso se lembre das inúmeras guerras na Europa, ao longo dos tempos; do massacre dos povos originários nas Américas; e da escravidão negra, episódios perpetrados, em geral, pelos brancos. Como se verá a seguir, essa questão se dilui na “sequência” A estirpe dos malditos, pois o grupo ali reunido compõe-se de crianças brancas, negras e asiáticas.

[2] Importante pensar que se a perspectiva da invasão interplanetária fosse levada a cabo, traria em seu bojo a constatação, nada agradável, de que as mulheres teriam sofrido um “estupro interseres”, no sentido de que foram relações não consensuais.

[3] “Crianças do mal” advindas de algum dos países comunistas, que em geral não estimulam a prática religiosa. Eis um retrato simplificador, embora eficiente, que pode ser elaborado a partir do filme, emulando o que se pensava, no restante da Europa e nos EUA, do Leste europeu.

[4] O quinto episódio da segunda temporada da ótima série Eli Roth’s History of Horror trata desse subgênero dos filmes de terror, exatamente aqueles que trazem “crianças sinistras” como personagens, citando inclusive muitos dos filmes listadas acima. Vale a pena assistir.