22 setembro, 2020

Uma segunda antologia da pandemia: de novo, o cinema sob o domínio do vírus

Mauro Nicola Póvoas



 

Nestes tempos pandêmicos, volto a abordar um filme sobre o coronavírus, que se alastra pelo mundo neste 2020, e teima em não ir embora. Falei na outra frase em “filme”, mas não sei se o termo correto é este, talvez fosse série. Quem me conhece sabe que não gosto muito de séries, pouco vejo e quase nada sei sobre elas, e o blog se determina a falar de filmes, não de séries, então fiquei um tempo matutando se deveria escrever ou não sobre Feito em casa (Homemade), que está disponível na Netflix desde 30 de junho de 2020.

Mas enfim, como podem ver, ganhou a ideia de que se trata de um filme em episódios, assim como Antologia da pandemia, por mim aqui comentado em agosto, embora a Netflix venda a coisa toda como uma série. Tanto assim que, na plataforma, aparece um “Volume 1”, aludindo ao fato de que em breve possa surgir uma segunda temporada, além de na descrição aparecer que os episódios podem ser assistidos na ordem que o espectador quiser, sem seguir o pré-estabelecido. Eu, no entanto, aferrado à ideia do conjunto, optei por ver na sequência.

São 17 curtas, com duração de 5 a 11 minutos, dirigidos por gente de vários lugares do mundo (chama a atenção as origens híbridas dos envolvidos, que colocam em xeque a noção de nacionalidade), projeto idealizado pelo chileno Pablo Larraín. Há uma mescla de diretores menos conhecidos com nomes importantes, como o italiano Paolo Sorrentino, Oscar de melhor filme estrangeiro por A grande beleza, todos convidados a darem as suas visões do momento, obedecendo ao isolamento social e utilizando os meios disponíveis – histórias autoficcionais, familiares como atores, câmeras de celulares, cenários extraídos das próprias casas. Chama a atenção dois episódios dirigidos por atrizes hollywoodianas, Kristen Stewart e Maggie Gyllenhaal, com destaque para essa última, estreando atrás das câmeras e responsável pelo melhor episódio da coletânea, em minha opinião.

Notam-se curtas que vão por um caminho mais poético, enquanto outros seguem mais estritamente a estrutura narrativa, com uma oscilação na qualidade, como sempre ocorre em filmes deste tipo. É o que pretendo analisar rapidamente a seguir, sempre aludindo ao curta pelo diretor, pois a própria Netflix, na apresentação inicial do material, não dá ênfase a um eventual título, que aparece somente ao final, nos créditos.

O primeiro curta, dirigido pelo cineasta francês Ladj Ly, mostra um drone, manipulado por um garoto negro, pelos subúrbios de Paris, em sobrevoo que serve para caracterizar a nova vida nas ruas, imposta pelo vírus. Esse episódio, com poderosas imagens panorâmicas, encontra um interessante contraponto no décimo sétimo, da iraniano-americana Ana Lily Amirpour, com narração de Cate Blanchett, em que uma ciclista, a própria diretora, circula por uma desértica Los Angeles, em um retrato do silêncio que reina na meca do cinema mundial – teatros fechados, a Calçada da Fama sem ninguém tirando fotos, o trânsito desengarrafado. Se no começo da pandemia todos são atingidos, como se vê no diálogo poético estabelecido entre o primeiro e o último episódios, obviamente que, com o passar do tempo, as camadas sociais vulneráveis são as que mais sentem os efeitos da situação atípica.

Falando em elementos poéticos, o terceiro curta segue esse caminho, com a norte-americana Rachel Morrison declamando um poema para seu filho de cinco anos. Desta maneira, o pequeno filme funciona como um registro, para que o futuro adulto possa ver como a sua subjetividade infantil encarou aquele momento tão extraordinário.

Antes, no segundo episódio, Sorrentino encena um encontro inusitado, sarcástico e ambíguo, entre o Papa Francisco e a Rainha Elizabeth II, em alusão direta à estrutura dialogada de Dois papas, de Fernando Meirelles, também disponível na Netflix. A curiosidade é que as duas personagens são “interpretadas” por bonecos, dentro da ordem de usar somente os objetos e as ferramentas disponíveis para a gravação. Mesmo espírito que anima o quinto, ambientando em Lisboa, do zambiano-galês Rungano Nyoni, ao colocar na tela conversas por meio de aplicativos, em um episódio inexplicável e confuso, de longe o mais dispensável da antologia – pode pular sem medo, ou aproveitar para ir no banheiro ou tomar água (o que eu fiz).

Outros que não me agradaram muito são o oitavo, da japonesa Naomi Kawase, que foge do formato narrativo tradicional, ao seguir pelo caminho poético; o décimo quarto, de Kristen Stewart, que faz uma mulher insone por causa do estado de coisas no mundo e de um grilo que a incomoda; e o décimo sexto, do igualmente chileno Sebastián Lelio, que causa estranheza, ao dar uma forma de musical ao seu curta.

O quarto episódio, do também produtor Larraín, oferece a história de um idoso que busca o contato com uma antiga namorada, por videochamada, e que parece ir por um lado, mas dá uma guinada, desconcertando o espectador, que fica entre a surpresa e o riso. É um dos melhores episódios, ao lado do décimo, dirigido por Maggie Gyllenhaal, único que toma o rumo da ficção científica, ao criar um mundo distópico dominado pelo vírus – aqui também, como em um dos episódios de Antologia da pandemia, há a presença de uma encomenda que chega pelos Correios, algo comum em um mundo em que comprar em lojas físicas tornou-se algo arriscado. Essas duas histórias são das maiores em extensão, permitindo reviravoltas e um maior desenvolvimento das personagens.

O sexto, da mexicana Natalia Beristáin, é angustiante, ao trazer uma menina sozinha, executando todas as tarefas da casa. O que houve? Seus pais morreram? Saíram em busca de comida, em um mundo dominado pelo caos, e não voltaram? O espectador, aflito, fica sem saber dos fatos que levaram àquela condição de isolamento e solidão, enfim amenizada na conclusão.

Outros capítulos que se destacam são o sétimo, em que o diretor alemão Sebastian Schipper encena um embate consigo mesmo, numa história clássica de doppelgänger (duplo; ou, no caso, triplo!), em que se misturam humor e tensão, ao mostrar que o isolamento pode nos levar às bordas da loucura, e o décimo segundo, que traz indiretamente a presença nacional, pois é dirigido pelo norte-americano Antonio Campos, filho do conhecido jornalista brasileiro Lucas Mendes. Com toques de thriller, deixa o público alerta até o final em aberto, que não responde às dúvidas plantadas ao longo da narrativa de 8 minutos.

Uma característica que une alguns episódios é a autoficção, em que o diretor conta a sua história utilizando diretamente seus familiares para trazer dados reais (ou não) para o tecido narrativo, com resultados sensíveis. É o caso do nono, do escocês David Mackenzie; do décimo terceiro, do sino-canadense Johnny Ma; e do décimo quinto, da diretora britânica de origem indiana Gurinder Chadha. Já os libaneses Nadine Labaki e Khaled Mouzanar, no décimo primeiro segmento, realizam uma ode à imaginação, em uma situação tão dura para todos. O curta pode causar um pouco de estranheza e até cansar, ao longo de seus 7 minutos, mas no fim um paratexto explica o contexto da gravação e ilumina o episódio.

O cinema, desde o seu início, apresentou-se com uma característica fundamental, que o conforma social e artisticamente: foi sempre coletivo na criação e na recepção. Esse último aspecto mudou desde o advento e a afirmação, em sequência, da televisão, do videocassete, depois do DVD/Blu-Ray e, agora, do streaming (que se solidificou de vez na pandemia), equipamentos e plataformas que foram, cada vez mais, levando a recepção do cinema para dentro dos lares.

Feito em casa traz, inevitavelmente, uma reflexão não sobre a já dada questão da recepção fílmica, que pode ser coletiva ou individual, mas sim sobre a produção. Assim, qual o futuro do cinema enquanto indústria criativa que sustenta milhares de pessoas, tendo-se no horizonte uma coletânea como essa oferecida pela Netflix, que traz pequenos curtas com boa qualidade, filmados individualmente ou com equipes reduzidíssimas, com parcos recursos e sem efeitos especiais de grande monta?

Se a literatura, de quem o cinema é primo-irmão, se constitui como uma arte em que a escrita se dá sozinha, assim como a leitura, a possibilidade do fim do cinema como experiência coletiva, em sua produção e recepção, é assustadora, pois aniquilaria o caráter de sociabilidade e comunhão que ele “pegou emprestado” de outro parente próximo, o teatro. No meu caso específico, posso afirmar que estou com saudades de ver uma película na telona, em uma sala cheia de desconhecidos, até que subam os créditos (demonstração efetiva de quantos profissionais estiveram envolvidos na produção), os quais avisam que daqui a pouco é hora de, que pena!, voltar para o mundo lá fora.

A tecnologia domina a vida das pessoas, transformando-as em cineastas em potencial, já que todos carregam um celular com câmera de última geração na palma da mão. O tempo vai dizer se isso é bom ou ruim para o futuro do cinema, que parece estar numa encruzilhada, sem saber para onde vai. Na verdade, estamos todos, em 2020, sem norte e com perspectivas negativas a partir do panorama que se desenha: crise, recessão, diminuição das liberdades. Só nos resta aguardar os próximos capítulos.

11 setembro, 2020

"O monstro do ártico" a contrapelo

 Daniel Baz dos Santos



 

Com a recente confirmação por parte de John Carpenter de que a refilmagem de Enigma de outro mundo (1982) está em andamento, decidi rever O monstro do ártico (1951), de Christian Nyby e Howard Hawks, obra na qual a película da década de oitenta se baseou. Numa primeira assistida, é difícil ir muita além da leitura canônica: O monstro do ártico é, sem qualquer intenção de disfarce, um filme macarthista. Sua estrutura narrativa está soterrada pelo ideal alegórico que anseia alertar a população estadunidense a respeito da ameaça comunista, postura que está em outras obras da mesma década, sendo problematizada, no mesmo ano, pelo clássico O dia em que a terra parou (1951), de Robert Wise, e reforçada pela antológica ficção científica Vampiros de almas (1957), de Don Siegel.

No entanto, a mimese ficcional é uma atividade desviante, repleta de possibilidades refratárias (alegóricas, simbólicas, afetivas, ideológicas) que costumam se embaralhar dentro das inúmeras tensões que entram em jogo durante a configuração formal, muitas vezes à revelia do indivíduo que a idealizou. Ao engajar-se na produção do discurso estético, o cineasta, munido das contradições próprias do material expressivo – contaminado por suas pulsões inconscientes, por seus cacoetes retóricos, pelos modelos discursivos, pelos padrões culturais e pelas inúmeras potências desconhecidas de seu próprio imaginário, ainda em estado de latência – pode produzir, junto daquilo que deseja nos apresentar, a desfiguração de seu próprio discurso. Em outras palavras, é possível ler muitas obras artísticas a contrapelo, na contramão daquilo que seus realizadores quiseram dizer, validando conjecturas que se movem na direção oposta de suas reais intenções, que se contrabandeiam para dentro da estrutura narrativa e corroem toda pretensão de unidade na visão de mundo exibida. Experimentem, por exemplo, assistir aos filmes da série Velozes e furiosos procurando elementos para uma crítica às convenções do que construímos culturalmente como “masculinidade”. É um prato cheio.

Tentemos o mesmo exercício em O monstro do ártico, escavando as ranhuras no discurso da obra, lendo suas fendas e contradições, visto que, ao rever o filme (e esta é a minha terceira ou quarta vez), novas possibilidades de interpretação se desvelam para além de sua alegoria central. Comecemos pelo seu enredo: uma equipe da força aérea norte-americana, sediada no Alasca, é incumbida de investigar um acidente ocorrido próximo a uma estação científica localizada duzentos quilômetros ao norte. Com a ajuda dos pesquisadores reunidos no local, liderados pelo Dr. Carrington, e acompanhados pelo jornalista Scotty, os militares encontram uma nave extraterrestre submergida no círculo polar ártico. Depois de destruir o que sobrara do veículo interplanetário, a comitiva descobre um alienígena congelado sob a neve e o levam, preso no bloco de gelo, para a base.

O encontro entre cientistas e militares nos momentos iniciais do filme é fundamental para que entendamos as contradições éticas e ideológicas expostas por ele. As interações entre os grupos são representadas pelas figuras do Dr. Carrington, quem está no comando da comitiva, já que aquela é sua estação de estudos, e pelo capitão Hendry, que não esconde seu desdém pelos pesquisadores, alegando que eles passam o dia “procurando o rabo de ursos polares”, ou que, quando interessados por algum assunto, lembram “crianças babando por um brinquedo novo”, comportamento desdenhoso que é replicado pelos demais oficiais. Há uma cena, por exemplo, em que, prestes a ouvir a explicação do que seria uma videira telegráfica (plantas que conseguem se comunicar entre si) boa parte dos militares se retiram desinteressados para tratar de assuntos que julgam mais importantes. Em outra, Hendry interrompe um dos cientistas, ao não entender nada do que ele diz, julgando mais prático apenas confiar na sua palavra.

Para traduzir em tessitura semiótica esses elementos, a composição da tomada que nos apresenta Carrington o situa à esquerda do plano, cujo centro é ocupado pelo complexo maquinário que ele opera na ocasião, repleto de botões e mecanismos incompreensíveis para os observadores ao redor. Nosso olhar é convidado a se desviar do objeto em direção ao cientista, obrigando que sua identidade narrativa passe pela mediação do código hermético e desconhecido da ciência, representado pelo aparelho. Os comandos que ele dá aos indivíduos que trabalham ao seu lado também estão repletos de um jargão ininteligível, encapsulado em falas sempre calmas, sérias e ponderadas, atitude oposta, em todos os aspectos, à forma como Hendry é introduzido, a saber: em uma mesa de pôquer, falando vulgaridades enquanto se diverte com seus subordinados como se fosse um deles.

E não é somente com Carrington que o todo discursivo do capitão entra em conflito, mas também com as expectativas do jornalista Scotty, a quem o desejo de levar a história da invasão alienígena para o mundo é suspenso o tempo inteiro pelo militar, ainda que a relação entre eles seja, ao fim, marcada pela amistosidade. A partir desses elementos, torna-se possível afirmar que um componente essencial na construção de O monstro do ártico é a disjunção intrínseca à dinâmica comunicacional das personagens. Não há fluidez ou linearidade nas conversas entre os grupos e, muitas vezes, dentre os indivíduos pertencentes a um mesmo nicho. Esse ideal é expresso, por exemplo, nas constantes tentativas dos militares em comunicar ao general Fogarty o que está acontecendo na base e receber, em contrapartida, as orientações a respeito de como devem proceder. As mensagens do superior chegam aos pedaços, incompletas, ou completamente alheias à realidade do local, logo virando piada entre os demais oficiais.

Esse descompasso imanente às trocas de informação entre os sujeitos, e a atitude segregacionista que muitas vezes as dirige, também conduz a subtrama do romance entre Hendry e Nikki, assistente de Carrington. A mulher o conheceu em momento anterior e, depois de uma noite regada a bebidas e gracejos, ambos se despediram sem que a real natureza de sua relação ficasse clara, o que faz o capitão se sentir abandonado e a secretária estranhar seu ressentimento. Sendo assim, a comunicação entre os seres, seja na sua esfera intelectual, seja na sua dimensão efetiva, está repleta de idissincronias que expõem uma sociedade desregulada e fragmentada, feita de falhas interlocutórias sistemáticas e expectativas constantemente frustradas.

Depois dos contatos iniciais entre os envolvidos na investigação, todos se dirigem ao local do acidente para entender o ocorrido. Quando avistam os rastros deixados pela queda do objeto não identificado, os homens se aproximam receosos da grande marca no chão, que indica a presença de uma aeronave dotada de formato diferente de qualquer veículo conhecido. Aqui, as personagens se irmanam diante de índices que nenhum deles pode interpretar, independentemente de suas formações e históricos. Isso é transmitido em uma das cenas mais bem realizadas do filme, quando os exploradores, para entender a dimensão e feitio do objeto, decidem se posicionar nas bordas do buraco deixado por ele. A câmera se afasta, tornando possível perceber que se trata de um círculo. Por esta via, a cena conflita duas escalas distintas: a humana e a extraterrena; sendo que aquela, apequenada e hesitante, não consegue transfigurar/traduzir o impacto causado por esta. Estamos diante, portanto, de novo descompasso, que estará na raiz do medo sentido pelos humanos, notadamente dos militares que desejam destruir o disco voador o mais rápido possível.

Além disso, opera aqui outro campo semântico. As personagens ficam em roda e abrem os braços, mas suas mãos não se tocam. Há um lacuna discreta, mas decisiva, entre seus corpos. Nesse sentido, se, em uma camada, a sequência sugere uma possível comunhão entre os de cá (terráqueos), contra os de lá (alienígenas) em outra, a disposição dos indivíduos em cena relembra as dissidências insolúveis entre eles. A força deste momento tão decisivo só é possível graças às possibilidades estéticas da neve, que possibilita aos demais componentes visuais emergir na forma de perturbação em sua monotonia branca e regular, espécie de tábula rasa para os conflitos que interessam ao enredo.

A dimensão climática no filme, contudo, assumirá caráter ainda mais dramático. Para entendermos esse aspecto, é necessário situar os desdobramentos da trama. Após levar o alienígena para a base, o soldado responsável por vigiá-lo esquece um cobertor elétrico ligado sobre ele, o que derrete o bloco de gelo no qual a criatura se encontrava e permite que ela fuja para fora do complexo científico. A partir de então, todos os problemas de comunicação já anunciados se projetam nas interações dos sujeitos com o espaço ao redor. A segregação aumenta consideravelmente, com agremiações se formando em cômodos distintos, projetos secretos sendo implementados, informações mantidas em sigilo e portas sendo fechadas ou transpostas à força. Nesse sentido, a invasão deixa de ocorrer apenas entre a criatura do lado de fora e os seres dentro da base, mas também no interior da própria comunidade humana.

A desconfiança e a paranoia são evidenciadas em mais de uma oportunidade, ainda que não tenham aqui a mesma relevância que demonstrarão na refilmagem de John Carpenter. Contudo, como ocorre na versão de 1982, é neste ponto que o frio e a tempestade de neve constante desempenham outro papel narrativo-expressivo. Por conta das baixas temperaturas, dois fenômenos tomam conta das ações e da mise-en-scène. Primeiramente, as personagens entram e saem dos ambientes, despindo ou vestindo suas roupas, o que conota a natureza intercambiável dos papéis que elas assumem, além de ser uma espécie de metáfora visual para as inúmeras situações de encobrimento e desvendamento que se sucedem durante suas interações.

 Além disso, na maioria dessas circunstâncias, é necessário trancar as portas rapidamente, após o trânsito das personagens de dentro para fora das salas e vice-versa, em ordem de evitar o frio (ou preservá-lo, no caso do cômodo em que o alienígena é mantido no início do filme). Em todos estes momentos, em que os humanos se engajam com energia no selamento de algum espaço, reforça-se seu medo em relação à alteridade e ao mundo desconhecido por eles. Evidenciam-se, assim, seus desejos isolacionistas e sua incapacidade de compartilhar o território com alguém de origem distinta, recurso que será reutilizado (e redimensionado) em Os oito odiados, de Quentin Tarantino, outro manifesto a respeito das fraturas existentes na formação estadunidense. Complementar a isso, as subsequentes aparições e ataques do monstro ocorrem sempre nos espaços-limite dos umbrais, à beira das portas e entradas, o que sinaliza para uma iconografia do exílio e do estrangeiro e amplia a tensão entre o universo familiar e o outro, considerado estranho.

Nesse ponto, os conflitos se adensam. Os militares não conseguem conviver com os cientistas. O jornalista invoca a liberdade de imprensa, mas não consegue divulgar sua história. As poucas ordens do general são desobedecidas. Hendry assume de vez a autoridade que era de Carrington. Os diretores do filme não se furtam de demonstrar as divergentes visões de mundo dos dois contendores, cristalizando-as em frases-ideias como “Não há inimigos na ciência, apenas fenômenos para estudar”, dita pelo pesquisador, ou “Eu não trabalho para o mundo, mas para o exército dos Estados Unidos”, pronunciada pelo capitão.

Essas discrepâncias de opiniões e posturas tornam-se mais críticas ao serem retratadas por uma câmera geralmente afastada, avessa a closes, e que raramente se concentra em um único indivíduo. Na maior parte das cenas de diálogos de O monstro do ártico (e não se esqueçam de que elas dominam o filme), as personagens envolvidas se aglomeram ao mesmo tempo dentro da tomada, recortadas geralmente na altura dos joelhos (ou seja, ainda que os planos sejam mais abertos, eles se beneficiam daquela naturalidade do plano americano defendida por Griffith). Há uma economia de cortes durante os diálogos e uma ausência total de recursos como plongée e contra-plongée ou campo e contracampo, com as réplicas e tréplicas sendo todas expostas em um mesmo take imóvel.

Dessa forma, nosso olhar é provocado a vagar durantes as conversas, errando pelos sujeitos do discurso, observando seus ditos, suas falas e reações, como se não houvesse um ponto único no qual fixar nossa atenção (ambiguidade que estava no centro do cinema realista para Bazin e que foi incorporada às convenções do cinema da era dos grandes estúdios). Essa perturbação se manifesta na contramão do que a composição convencional da cena pretender trespassar e corrói qualquer intento monológico por trás das discussões empreendidas, princípio que fica evidente, e se incorpora espontaneamente na tessitura semântica, na sequência em que os personagens definirão o que fazer a respeito da criatura.

Nesse momento, em que os militares decidem aniquilar o invasor, a dimensão verbal de O monstro do ártico entra em conflito com a dimensão visual, sendo este o ápice de todo o processo de desconjunção comunicativa que comanda o filme. No início da narrativa, quando a criatura está no bloco de gelo, acompanhamos as descrições que os militares fazem dela submersa e criamos uma expectativa imagética que nos é externada por meio das possibilidades e limitações da palavra falada e reforçada pela descrição nos sinistros olhos da criatura. Esta lacuna entre um todo dizível e outro visível, e o desconforto do ato de olhar como contraparte do ato de se dar a ver, é estimulada pelo filme nas aparições do monstro, sempre rápidas, em ambientes de pouca iluminação, e situadas no fundo dos cenários e dos planos. Sua visualidade é feita de fragmentos de elementos ditos e parcamente observados, e isso está na raiz dos conflitos apresentados pelo filme.

Complementando esses procedimentos, antes do confronto final, os oficiais discutem nos mínimos detalhes como o ataque será executado. Mais uma vez, é seu enunciado oral que cria um todo visível a partir do qual podemos nos situar e calibrar nossas expectativas. A visibilidade da criatura está, mais uma vez, condicionada ao poder de nomeação e descrição dos seres humanos. Coerente com isso, quando ela finalmente aparece, a luz se apaga, visto que Carrington desligou o gerador para protegê-lo do mecanismo elétrico preparado para abater o monstro. Para além das questões de ordem técnica que certamente influenciaram as escolhas na retratação do extraterrestre, a ausência de dimensão visível concreta e estável dele culmina – novamente, a contrapelo – no processo de dominação de sua figura operado por parte dos terráqueos.

A morte do alienígena é cruel. A ordem é eletrocutá-lo até que não reste nada (não deixa de ser irônico que criatura tão influenciada pelo monstro de Karloff, no Frankenstein de 1931, pereça vítima do elemento que deu vida ao outro). No lugar em que ele foi atingido, sobra apenas um monte reduzido de cinzas. O filme termina, contudo, com a história de Scotty, finalmente autorizado a transmitir por rádio a narrativa que presenciou. O final é o trecho mais lembrado do filme, no qual o jornalista, depois de celebrar a ação dos militares, clama: “Vigiem os céus. Continuem olhando. Continuem vigiando os céus”. No entanto, tendo-se em conta o escrutínio dos ruídos e as perturbações produzidos no interior da narrativa, esta cena pode ser também lida na contramão das interpretações convencionais. Dessa maneira, a ânsia manifesta de tornar o desconhecido visível, para poder então dominá-lo, é sintoma de uma comunidade que não criou um espaço interno onde a alteridade possa ser verdadeiramente vista. Nesses termos, o discurso final reforça a univocidade, o autoritarismo, o preconceito e a xenofobia da sociedade estadunidense, revelando, assim, os verdadeiros ideias que estão na raiz de uma postura que se pretende nobre e bravia e que corroem a intenção mais imediata do filme de dentro para fora. Por esta via, quando os créditos sobem, acompanhados de uma característica marcha militar, a música já não consegue exaltar os heróis e seus feitos, mas se converte em trilha de terror perfeita para aquilo que suas ações realmente representam. Está construída, portanto, a contrapelo, uma crítica ao macarthismo e aos seus valores.

***

Penso em terminar este texto no parágrafo anterior, mas seria desonesto. Falando direto do Brasil de 2020, destruído por Bolsonaro e pela sua incompetência de lidar com a pandemia de Covid-19 (ou com qualquer outro assunto), ainda me assombra outro momento de O monstro do ártico, não citado ao longo da análise, em que o Dr. Carrington, cansado e desanimado com a postura intolerante e negacionista dos militares, comunica que apenas a ciência pode conquistar os avanços que as armas jamais sonharão. Encerro, então, movido pelo contexto contemporâneo, com outra grande lição de O monstro do ártico: da próxima vez, não sigam o capitão.

27 agosto, 2020

Deus é mulher, se soubermos ver

Daniel Baz dos Santos

 



Deus é mulher e seu nome é Petúnia (2019), quinto filme da macedônia Teona Strugar Mitevska, é uma obra sobre visibilização. Para construí-la, sua realizadora se utiliza de uma forma narrativa já consagrada, em que uma personagem inusitada, de forma não planejada e sob força de circunstâncias que escapam ao seu controle, se converte em um símbolo de resistência; premissa que, apesar de calejada, já rendeu obras importantes nesta década, como Eu, Daniel Blake (2016), de Ken Loach.

Neste caso, a narrativa, inspirada em história real, acompanha Petúnia (Zorica Nusheva em excelente performance), historiadora de trinta e dois anos, desempregada, acima do peso e que vive com os pais. Sua vida muda durante um ritual religioso promovido pela paróquia onde mora, no qual uma cruz é lançada ao rio e deve ser encontrada por um grupo de homens que disputam entre si quem consegue realizar a façanha primeiro. O vencedor do desafio tem o direito de ficar com o item. Enquanto assistia à liturgia, a protagonista mergulha nas águas e logra pegar o objeto antes dos contendores masculinos. Acontece que a cerimônia é proibida para mulheres, não sendo permitido que ela fique com a cruz. Quando tentam tomá-la de si, Petúnia foge, em posse do objeto, e esconde-se em sua casa. Em seguida, é encontrada, presa e agredida de inúmeras formas pelas autoridades envolvidas no caso. Nesse processo, a protagonista se conscientiza a respeito do seu lugar no mundo e da necessidade de questionar, e mesmo derrubar, as convenções e preconceitos da sociedade na qual está inserida.

Esse ideal conflituoso é exposto já nos primeiros momentos do filme. Logo após o título ser exibido, acompanhamos os eclesiásticos em procissão, entoando um cântico sagrado que se prolonga até que a cena mude de lugar e vejamos Petúnia sob o lençol de sua cama, prestes a ser acordada por sua mãe. Essa decisão, de manter a cantoria por alguns segundos no fundo da nova sequência, representa a influência dos dogmas cristãos na vida dessas personagens e orienta, em nível simbólico, os elementos que apresentarão a protagonista e sua família.

A câmera no início do diálogo se situa debaixo do lençol da cama da historiadora, em tomada claustrofóbica que causa maior incômodo por não sabermos ao certo o que estamos observando. Este efeito é ainda mais impactante por se tratar de um território supostamente familiar à Petúnia, mas que aqui se revela um espaço de desconforto e de opressão. Além disso, o tecido que a cobre insere a temática do papel do corpo feminino na sua relação com os controles sociais impostos sobre ele, devendo permanecer oculto e impotente, a não ser que esteja subordinado aos desejos masculinos. Sendo assim, ao cobrir completamente sua personagem com o lençol e posicionar a câmera nesse universo imperceptível e intangível, que deve ser conquistado à força pelo mecanismo fílmico, quase que por meio de uma invasão, a diretora está construindo a primeira das várias tensões entre o esconder e o exibir que regem sua narrativa.

Nesta mesma sequência, por exemplo, a oscilação entre exposição e encobrimento é reforçada pelo uso da profundidade de câmera, que estabelece um jogo complexo no plano das (in)visibilidades possíveis, com a mãe e a filha se alterando no primeiro e no segundo plano, dentro e fora do campo de visão, dinâmica desdobrada em momentos atípicos, nos quais o fundo é mantido em foco e o primeiro plano não, o que nos obriga a superar uma atitude meramente contemplativa e agir ativamente, isto é, desejando ver mais e/ou melhor a expressão das personagens e questionando seu posicionamento em cena.

Esses recursos técnicos acenam para o final da sequência. A filha opta por ficar totalmente nua, em resposta à mãe, que deseja controlar o que ela veste e reprova seu peso e aparência. Logo, percebemos que adentramos em um terreno carregado de mágoas e remorsos, provenientes da história pregressa de ambas. Quando Petúnia se olha pela primeira vez no espelho, ao fim do diálogo, temos uma composição de cena que situa a figura do pai e da mãe em ambos os lados de sua imagem refletida, manifestação semiótica de que sua identidade ainda está condicionada aos processos de aproximação e afastamento que vivencia em relação aos seus progenitores.

Para completar esse tecido discursivo, construído com muito cuidado por Teona, é importante reparar também em outros dois elementos de sua composição. Primeiramente, no tamanho mínimo da fotografia que a protagonista tem sobre sua cabeceira, na qual aparece junto à mãe, e que revela o esmorecimento de uma relação que um dia pode ter sido mais afetuosa. Além disso, é importante ressaltar que, durante todo o diálogo, podemos ouvir o som alto da TV em outro cômodo da casa, o que reforça o papel das estruturas midiáticas e da opinião pública na visão de mundo dessa comunidade conservadora, que se informa exclusivamente pelos noticiários, e que contextualiza a futura função da principal coadjuvante da história: a repórter local que se interessará pelo caso de Petúnia e evidenciará as questões de gênero que são postas em movimento por suas ações.

O que nos encaminha para um dos centros narrativos e ideológicos do filme: a sequência na qual Petúnia pega o crucifixo. Antes de tratar dela, contudo, devemos atentar para aquela que a precede, na qual a protagonista participa de uma entrevista de emprego para o cargo de secretária em uma malharia. Enquanto o dono da empresa age de forma abjeta, assediando-a na mesma medida em que reprova sua idade, aparência e profissão, observamos e ouvimos as mulheres que trabalham ao fundo, confeccionado roupas de diversos aspectos. Esta ambientação funciona como um comentário subjacente aos desníveis entre as atitudes e as aparências que são permitidas aos homens e às mulheres ter, na mesma medida em que evidencia seu aspecto arbitrário e construído.

Ao deixar a entrevista, Petúnia traz em suas mãos o busto de um manequim, que roubou na saída da fábrica, objeto que, por um lado, revela seu desejo de conquistar algo além do que lhe é oferecido, mas, por outro, oferece um novo correlato sêmico para sua condição psicológica fraturada, incompleta, em permanente crise (além da evidente crítica aos padrões de beleza e de consumo que orientam a sociedade). É com este objeto em mãos que Petúnia encontra a procissão religiosa e interage com os sacerdotes e os fiéis que desejam concorrer na busca da cruz. Estes vão passando por ela de forma enérgica, impetuosa e veloz, roçando seus corpos praticamente desnudados, já preparados para saltar na água, contra o dela. Nesse ambiente, o corpo feminino se torna apequenado ou invisível, dominado ou ignorado, indicando a ausência de um território de pertença para ele na atividade coletiva que se desenrola. Os homens, por sua vez, tomam conta não apenas do espaço público, mas também exercem a desmitificação da própria vivência sagrada que deveriam protagonizar. Eles sentem frio, reclamam, têm pressa em começar o evento. A oração do pároco demora muito. Os indivíduos então, em vista disso, debocham da cerimônia, riem entre si, apressam o término da reza. Seu comportamento revela que, para eles, o evento já está destituído de qualquer profundidade moral, tratando-se apenas de competição desprovida de pretensões espirituais, fator que será essencial para entendermos a violência de gênero que se executará a seguir.

Por conta de seu alarido, o pároco se atrapalha e derruba a cruz antes do tempo, situação que dá início ao processo de destituição do objeto que se se desdobrará daqui em diante. Sem motivo aparente, Petúnia, que assistia a tudo, decide mergulhar junto com os homens e apanha o item antes deles. No fim dessa sequência, com uma câmera extremamente afastada das figuras envolvidas na cerimônia, Petúnia ousa gritar e balançar os braços, cercada de homens por todos os lados, em ordem de demandar a condecoração que merece. Seus gestos sinalizam para o pároco, mas também para nós, que acompanhamos sua façanha. Este é o primeiro dos inúmeros atos da protagonista em direção a um processo de aparecimento que, ao fim, é a tônica principal do filme.

 A submersão da cruz nas águas durante toda esta sequência, e suas diversas aparições e desaparecimentos diante de uma câmera nervosa, que tenta acompanhar as imprevisíveis evoluções do objeto que afunda e emerge diversas vezes, se relaciona, nesse sentido, com o momento vivido pela protagonista, já que, nessa cena, ela está dando início à sua jornada de visibilização. Com efeito, seu mergulho nas águas, seguido de sua emersão em posse do item, se irmana com essas performances de aparição e desaparecimento que conduzem toda a trama. A própria cruz será constantemente ocultada e revelada em contextos diversos da película, sendo colocada debaixo da cama de Petúnia, entrando e saindo de sua mochila, de dentro do cofre na delegacia, em situações geralmente regidas pelo desejo das demais personagens de ver ou mesmo tocar a peça sacra.

Na maior parte dos casos, estas interações se dão após a captura de Petúnia, nas cenas que se passam dentro da delegacia, ambiente no qual se desenrola a maior parte do filme. É nesse ponto que a protagonista se converte em uma espécie de Antígona às avessas, pondo em choque a lei dos homens e as leis espirituais. Quando perguntados sobre os crimes que Petúnia cometeu, as autoridades são unânimes em dizer que ela não está presa. Contudo nenhuma delas permite que ela volte para casa, nem consegue explicar do que ela é acusada. Depois de inúmeras situações com ecos kafkianos, quando finalmente lhe é outorgada a libertação, os crentes que perderam a disputa pela cruz, fanáticos religiosos, não permitem que ela deixe a delegacia. Entre agressões físicas e verbais, um balde de água é lançado contra seu corpo. A água, elemento associado ao seu renascimento, torna-se a arma do patriarcado contra sua imagem subversiva. Em uma sociedade dominada por homens, os ícones podem ter seu sentido integralmente deturpado por eles. A condição da historiadora é, portanto, regida por uma força maior, um aprisionamento de ordem moral, não escrito nem explicitado em detalhes, mas que têm mais força do que qualquer estrutura de direito.

É aqui que tem destaque a figura de Slavica, jornalista interessada no caso de Petúnia e que, apesar de certos exageros em suas falas muito expositivas e de uma composição estereotipada por parte da atriz Labina Mitevska, evidencia essa estrutura patriarcal, responsável pelos impedimentos a que Petúnia é submetida. Além disso, a repórter deve enfrentar também, em diálogos que mantém pelo telefone celular, as consequências de um ex-marido relapso e ausente em relação à filha, e de um chefe que não vê relevância em contar a história de Petúnia. Não é por acaso que, por inúmeras vezes, a câmera do cinegrafista que a acompanha se transforma na própria câmera responsável por apresentar a trama do filme, em um desejo manifesto de estreitar as fronteiras entre o discurso jornalístico, e suas ambições mais imediatas e empenhadas, e o discurso cinematográfico.

Antes de terminar este texto, li algumas críticas que consideraram problemática a falta de uma clara motivação para a protagonista pular na água em busca da cruz e, apesar de concordar que esta atitude seja, de fato, casual, não a considero um sintoma de que o filme seja mal resolvido, de acordo com o que estas mesmas leituras apontaram. Tendo uma cronologia clara do início ao fim, Deus é mulher e seu nome é Petúnia se nega, contudo, a construir uma causalidade bem definida. Isso é necessário, pois Petúnia desenvolve sua motivação no percurso da sua história, entendendo o que seus atos querem realmente dizer conforme os episódios avançam. Os espectadores, por sua vez, ao acompanhar sua construção, se constroem junto com ela, preenchendo as lacunas morais e sociais que seu percurso deixa em aberto. Entender o porquê das ações de Petúnia é fundamental no movimento de torná-la visível. É sobre isso que esta obra fala.

O que nos leva à primeira tomada do filme, posicionada antes do título, em que vemos Petúnia a distância, em plano abertíssimo, sobre uma piscina, como se caminhasse acima das águas. A personagem está completamente exposta, integralmente emersa, em pose frontal que encara nosso olhar diretamente. Nós, contudo, precisamos forçar a visão para conseguir fitá-la de um ângulo tão afastado. Durante todo o filme, é preciso manter este esforço, ativo, consciente e trabalhoso, de busca ininterrupta e profunda, se quisermos dar a ver os dramas vividos pela protagonista e das mulheres que, como ela, sofrem as agruras de viver em uma sociedade patriarcal e falocêntrica como a nossa.

19 agosto, 2020

"Antologia da pandemia" acerta ao ir de 13

Mauro Nicola Póvoas

 


Foi lançado nas plataformas digitais (Looke, Now etc.), no início de agosto, talvez o primeiro filme a abordar o coronavírus e o estrago que ele tem feito ao redor do mundo, seja com mortes, seja no psicológico de todos nós, que estamos convivendo com o distanciamento social há já tantos meses, sem saber quantos mais vêm pela frente: trata-se de Antologia da pandemia, produzido por João Pedro Fleck, Nicolas Tonsho, João Pedro Teixeira e Fernando Sanches, todos vinculados ao Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa), que recentemente teve a sua 16ª edição, em versão on-line.

A película aposta na composição em episódios, recurso clássico em narrativas cinematográficas de terror, como em Na solidão da noite (1945, com dois segmentos dirigidos pelo brasileiro Alberto Cavalcanti), Histórias extraordinárias (1968, com direção de Federico Fellini, Louis Malle e Roger Vadim, baseado na obra de Edgar Allan Poe) ou Creepshow I e II (1982 e 1987, por George A. Romero e Michael Gornick, respectivamente, a partir de Stephen King). Como costuma acontecer neste tipo de filme, em Antologia da pandemia o resultado é desigual, com episódios empolgantes e/ou fascinantes pelas questões que suscitam, e outros que pecam por seus atributos técnicos e/ou estéticos.

É mesmo difícil manter uma regularidade ao longo de treze curtas – sete brasileiros, seis estrangeiros –, os quais encontram a sua unidade temática na pandemia que assola o mundo ao longo deste inesquecível e inacreditável 2020. Não custa dizer que o número de episódios não está ali à toa, pois o treze traz consigo uma carga supersticiosa relacionada ao azar e uma simbologia política no Brasil. A sequência dos episódios, seus diretores e suas nacionalidades, em ordem de entrada, é a seguinte:

1.       Quarentena sem fim, de Fabrício Bittar (Brasil)

2.       O último dia, de Guillermo Carbonell (Uruguai)

3.       Estúpidemia, de Junior Larethian (Brasil)

4.       Baldomero, de Martín Blousson (Argentina)

5.       Jérôme: um conto de Natal, de Beatriz Saldanha (Brasil)

6.       Eclosão, de Alejo Rébora (Argentina)

7.       A mancha na parede, de Daniel Pires (Brasil)

8.       Pique-esconde macabro, de Julio Cesar Napoli Filho (Brasil)

9.       Barata, de Emerson Niemchick (EUA)

10.   Às vezes ela volta, de Matheus Maltempi (Brasil)

11.   Desenterrado, de Karl Holt (Reino Unido)

12.   Psicopompo, de Giordano Gio (Brasil)

13.   Roleta-russa, de Andreas “splash” Kyriacou (Chipre)

Em quase todos, há o uso de ferramentas de comunicação, como Skype, WhatsApp e programas de videoconferências, evocando o “novo normal” dos tempos de hoje, em que reuniões de trabalho, festas de aniversário, aulas ou uma simples conversa para matar saudades de um amigo ou parente precisam ser mediadas pelo computador ou celular. Em sua maioria, os personagens estão ou sozinhos em suas casas, ou com seus animais de estimação, a maioria sem companhia humana, o que leva à irritação, à desmedida e à insanidade mental, elementos que temperam as histórias.

Nota-se a presença de subgêneros tradicionais do terror, em enredos permeados pela doença ameaçadora e pela tecnologia que deveria ser um bálsamo: zumbis, fantasmas, ficção científica, bonecos assassinos, loucura, pacto com o diabo, metamorfose. Chama a atenção, também, o viés distópico de certos episódios, o que aumenta a letalidade do vírus e a sua capacidade de disseminação, já grandes na vida real, com o fim de maximizar o terror – assim, observam-se sintomas como estupidificação (em “Estúpedemia”), animalização (em “Eclosão”) e zumbificação (“Às vezes ela volta”), ou maneiras de transmissão devastadoras, não só pelo contágio interpessoal, mas também pela Internet, por meio de áudios ou lives, em “Quarentena sem fim” e em “Estúpedemia”. O caráter apocalíptico fica claro no primeiro episódio, onde a epidemia ainda continua, em março de 2022, ou em “O último dia”, em que o lockdown dura já exatos 2.153 dias (cerca de seis anos). Essa segunda, produção uruguaia, embora pequena em sua duração, é impactante em seu desfecho, ao estabelecer uma interessante oposição: dois objetos de baixa tecnologia (os quais sempre ganham importância nos momentos em que a sociedade entra em falência, algo comumente retratado na ficção científica), o livro que a menina lê, O Pequeno Príncipe (El Principito, na tradução em espanhol), e o rádio de pilha que o menino escuta versus o objeto altamente sofisticado, do ponto de vista técnico, que surpreendentemente aparece ao final.

Um aspecto louvável da coletânea é trazer o momento político do Brasil, devastado pelo governo inepto que desde 2019 afunda a nação, com descaso pela pandemia, pelo meio ambiente, pela educação, pela cultura, pela verdade, por tudo, enfim. Isso aparece em “Estúpidemia” e “Psicopompo”, em minha opinião dois dos episódios mais deficientes: o primeiro, pela atuação pouco convincente dos atores; o segundo, pela abordagem da questão da loucura paulatina causada pelo isolamento, tema fundamental no contexto, que poderia ser melhor explorado. Entretanto, paradoxalmente, ambos são certeiros ao lembrarem o contexto político atual: o fascismo que campeia no Brasil (no 3), a aceleração sem freio do número de mortos (retratada na voz que não para de contabilizar os que foram derrotados pela doença, no 12), os panelaços que cobriram o país em determinado momento de 2020 (igualmente no 12).

Em agosto, quando escrevo, parece que as pessoas cansaram de protestar e perderam sua capacidade de indignação, abatidas pela permanência do “presidente” no cargo, a que se aferra não para governar tendo em vista a população em geral, mas para proteger a si e a seus familiares. E tudo isso com a complacência da grande mídia, das elites e do empresariado, que por vezes até atacam o conservadorismo atroz dos mandatários encastelados no Palácio do Planalto. Todavia, ao fim e ao cabo, esses grupos não querem o impedimento do governo, porque na economia o trabalho sujo que lhes convém – privatização desenfreada, aceleração de reformas, precarização da vida dos mais necessitados – está sendo feito por Paulo Guedes e companhia.

Por sua vez, um elemento que alivia o clima pesado da película é o humor, voluntário ou não, como nos bonecos que ganham vida em “Baldomero” e “Pique-esconde macabro”, o que cria uma aura de “terrir” nos episódios: no primeiro citado, há a dúvida entre o caráter do boneco, se do “mal” ou do “bem”; já no segundo, o fato de a boneca ter sido adquirida pelo Mercado Livre imediatamente cria laços com o espectador, pois quem não comprou por essa plataforma durante a quarentena? Mais um exemplo de válvula de escape é a presença dos gatos em “Jérôme: um conto de Natal”, embora aqui essa suposta leveza se mescle a um pacto com o diabo, o que gera surpresa e estranheza. Aliás, como dito anteriormente, gatos e cachorros aparecem em outros episódios, como no terceiro e no décimo segundo, fazendo companhia às pessoas isoladas.

Entre sugestionar ou mostrar, dicotomia observada ao longo da história do cinema de horror, Antologia da pandemia apresenta bons exemplos dos dois caminhos. Um dos melhores episódios, “Às vezes ela volta” (título que lembra um conto de Stephen King, “Às vezes eles voltam”), aborda um tema que, por excelência, contém conteúdo explícito: zumbis. Aqui, no entanto, nada é mostrado, pois tudo acaba sendo imaginado pelo espectador, por intermédio das mensagens de WhatsApp trocadas pela protagonista, sua irmã e sua mãe. Já os curtas “A mancha na parede”, “Barata” e “Desenterrado” ocupam-se em maior medida com o susto final e o medo, sensação fundamental no gênero. “A mancha na parede” e “Desenterrado” constroem muito bem a escalada de tensão, com personagens que, isolados, parecem perder o senso, criando uma atmosfera fantástica, em que já não se sabe o que é realidade e o que é imaginação. A produção norte-americana “Barata” traz uma cena final tétrica, que lembra aquela passagem de Pulp fiction, em um porão de loja, ou filmes tipo O albergue e Jogos mortais.

Outro curta que se destaca é o décimo terceiro e último, “Roleta-russa”. O episódio que encerra a antologia é ambientado em uma sala de videoconferência, com homens e mulheres interagindo a distância, em uma brincadeira macabra para ver quem pega o coronavírus primeiro. As pessoas mostram-se com os nervos à flor da pele, em decorrência da incerteza trazida pela pandemia, tão desnorteadas que chegam ao ponto de jogarem com a morte e a doença – o ser humano, pouco resistente, confrontado com situações extremas, deixa-se entregar facilmente ao acaso ou à ira.

Antologia da pandemia é uma montanha-russa de emoções, oferecendo visões ora trágicas, ora cômicas do momento peculiar pelo qual todos estamos atravessando. A par das limitações técnicas e físicas de uma produção feita por cada um dos diretores a partir de sua situação particular de isolamento, o conjunto merece ser visto, mesmo por quem não aprecia o gênero horror, pois é, desde já, um documento histórico que dá conta, para as gerações futuras, do que se passa hoje no mundo e em especial no Brasil, afinal, o que foi mesmo que fizemos para merecer, ao mesmo tempo, a Covid-19 e o “presidente” Bolsonaro?

Em meio à pandemia, um retorno

Apaixonados por cinema que somos, tentar escrever sobre filmes é quase um caminho natural. A ideia acalentada de um blog finalmente veio à tona em março de 2015, com o nome “Cinema em Prosa”, página que conseguimos manter com certa regularidade até outubro de 2016. Porém, por motivos alheios à nossa vontade, paramos de publicar. Como são textos que vêm à tona nos intervalos da atividade principal que desempenhamos (professores e pesquisadores de Literatura), acabou que o blog foi sendo deixado de lado. Quatro anos depois, vamos tentar de novo, pois somos teimosos.

Daniel continuou a escrever regularmente sobre o assunto, até porque tinha uma coluna semanal de crônicas no caderno cultural “O Peixeiro”, do jornal Agora, de Rio Grande, que infelizmente parou de circular em março de 2020, e muitas vezes aproveitava o espaço para falar de cinema.

Mauro escreveu muito pouco sobre cinema neste período, mas continuou vendo filmes “adultos” dentro do possível. Já filmes infantis, viu quase de tudo, levando em conta a convivência com os filhos Ramiro e Bibiana, hoje com 6 e 4 anos – pensando bem, ter parado em 2016 é sintomático, pois é o ano em que nasceu a Bibiana.

Enfim, com pandemia ou não, o tempo continua curto. Mas agora, em agosto de 2020, vamos empreender uma nova tentativa de colocar no ar textos que estão guardados nas pastas do computador, em um blog repaginado – estamos no Facebook também. A intenção é colocar pelo menos dois textos por mês, um de cada autor, sejam inéditos escritos recentemente ou não, sejam coisas já publicadas em outros espaços, mas que merecem ser (re)lidas. A meta tornada pública tem a intenção de forçar a regularidade da publicação, mas se tem toda a consciência que pode dar tudo errado, e a pressão só servir, mesmo, para a inação. A ver.

Neste blog repaginado, por vezes buscaremos o caminho da crítica mais alentada de um filme e por vezes praticaremos uma mirada panorâmica, comentando duas ou mais produções cinematográficas em um único texto.

Na estreia, em tempos pandêmicos, um filme sobre a pandemia.

Dito isto, só resta desejar uma boa leitura.

Daniel e Mauro