29 fevereiro, 2024

Um pequeno comentário sobre o Vento, em homenagem a Abbas

Em 28 de julho de 2016, dei publicidade em nosso antigo blog, o Cinema em Prosa, a esse pequeno texto, até então inédito, e que escrevi depois de assistir a O vento nos levará no cinema, há alguns anos. A publicação, naquele momento, se deu por causa da morte do diretor iraniano Abbas Kiarostami, ocorrida em 4 de julho daquele ano. Agora, por causa do Roberto Medina, que ontem fez um comentário sobre Kiarostami no Facebook, me lembrei do artigo e a ele voltei. Resolvi, então, neste dia bissexto, republicá-lo, agora no Conversa de Cinema.

 

Mauro Nicola Póvoas

 



Lá pelas tantas, em O vento nos levará (Bad ma ra khahad bord, 1999, direção de Abbas Kiarostami), o personagem que vem de fora, aquele que é civilizado, que possui telefone celular e carro, reclama que se sente ocioso, já que a missão para a qual está destinado – filmar um ritual típico da vila de Siah Dareh, que se desencadeia quando alguém morre – fica impossibilitada de se concretizar, já que a pessoa que está doente, em vias de falecer, não quer perecer. Na verdade, o Engenheiro (único personagem não nomeado no filme; todos os outros são chamados pelos seus nomes “reais”, o que ajuda a borrar as fronteiras entre ficção e documentário) sente-se deslocado naquele local, em que todos têm as suas tarefas rigidamente marcadas, e parecem destinadas a cumpri-las ad infinitum: há aquele que abre o buraco e aquela que extrai o leite da vaca; há a que faz o pão e o que estuda para os infindos exames; há aquela que engravida e dá à luz em ritmo quase industrial; há o que trabalha com o ensino e o que mexe com a terra.

Não por acaso, são todas tarefas ligadas à vida ou àquilo que carrega consigo símbolos essenciais, como a terra, a natureza e o alimento, ou ainda àquilo que supostamente permite o vislumbre de um futuro melhor, por meio da educação: ou seja, signos positivos. O personagem principal, por sua vez, caracteriza-se por um viés negativo, pela ranzinzice e maldade que sutilmente (aliás, no filme, tudo é sutil) marcam suas atitudes, como quando vira a tartaruga com o casco para baixo ou no momento em que é grosseiro com o menino que serve de cicerone pelos caminhos da vila iraniana. No início, para o mesmo menino, o homem parece já tentar justificar seu comportamento que aflorará posteriormente, exemplificando que, como as máquinas, os homens podem “pifar” a qualquer momento, o que pode causar injustiça e incompreensão.

O deslocamento de lugar, forçado ou não, no entanto, sempre acarreta transformações no indivíduo. Aqui, a viagem faz com que o Engenheiro passe a enxergar a vida pela lente da vida, e não pela da morte, pois o que o trio de personagens – embora dois deles nunca apareçam – vai buscar na longínqua localidade, senão um ritual de morte? O release de divulgação já aponta: “A vida insiste em vencer neste filme que ganhou a Prêmio do Júri do festival de Veneza/99”: a vida está lá, explodindo em todos os cantos, mostrada aos espectadores parcimoniosamente pela câmera – as cenas dos cachorros brincando e correndo; a idosa, motivo da ida dos “estrangeiros” à vila, que teima em não morrer, contra todas as previsões; o homem que, cavando um buraco, milagrosamente não morre depois de um soterramento; a presença do médico, que resume a esperança.

Aos poucos, esses sinais de vida vão se entranhando no homem que, a princípio, concentra a sua atenção apenas em atender ao telefone celular que toca incessantemente, cena-chave que se repete quatro ou cinco vezes ao longo do filme. Opera-se, desta maneira, uma metamorfose, com a presença de elementos vitais justapondo-se ao impulso da morte que move o filme em seu início. Assim, o personagem principal encontrará uma espécie de redenção, seja quando avisa a tempo aos colegas do cavador de buracos do soterramento, seja quando pede ao médico que visite a velha que está prestes a falecer.

Os passeios na garupa do médico, aliás, complementam esse percurso de mudança. O Engenheiro transmuta-se, do motorista da caminhonete que se desloca de cima para baixo sem notar a paisagem à volta, em passageiro; assim postado, em posição secundária, pode melhor observar a região. A beleza da natureza do lugar é já referida no início do filme e não é à toa que o cartaz da película traz como imagem-símbolo os dois personagens na moto, em sintonia com a imensidão da paisagem.

Em suma, o Engenheiro transforma-se, do “abutre” que fica à espreita da morte para poder satisfazer o mundo “civilizado” – esperando ansiosamente para poder se deliciar com os rituais extravagantes e plásticos da população interiorana –, em observador que delicadamente passa a interferir na vida dos nativos: as várias caronas, a indicação para que o médico vá ver a idosa doente, a preocupação com o bebê vizinho que chora, a “cola” ao menino.

A ociosidade, aquela referida inicialmente, parece estar ligada à negatividade, à morte, mas, na verdade, é só o nome dado pelo Engenheiro a uma falta de percepção de como se dá a rotina no lugar, em que tudo é mais lento, mais calmo; as coisas, porém, estão ocorrendo à sua volta, e ao natural ele começa a se integrar na comunidade e a ajudá-la.

O vento nos levará mostra que uma vida aparentemente sem destino e sem sentido, conduzida de forma errônea, pode recriar-se a partir de situações e tramas que surgem e se constroem, numa constante redescoberta de novas trilhas e caminhos. Resumindo, é um filme sobre a expectativa de mudança que todos trazem consigo, algo, enfim, próprio aos seres humanos.

11 novembro, 2022

Selvageria relatada

 

Mauro Nicola Póvoas

 



Em Relatos selvagens (Relatos salvajes, 2014), vê-se mais uma vez a qualidade técnica e estética que o cinema argentino alcançou. A partir da produção surgida de 2000 para cá, pode-se falar de um “Novo Cinema Argentino”, que tem na figura onipresente de Ricardo Darín a sua pedra de toque – até um Oscar os hermanos ganharam nesse período, com O segredo dos seus olhos em 2010 (Darín é o ator principal, óbvio). Da Argentina, parece emanar um frescor temático que alcança a subjetividade de cunho filosófico-existencial que faz todo o grande Cinema (você sabe o que estou falando – Fellini, Bergman, Scola, Kubrick, Lynch, Allen etc.), não o simulacro que inunda os shoppings toda a semana. Dito isso, queria fazer uns comentários sobre os seis relatos selvagens apresentados por Damián Szifrón.

Nesse conjunto sêxtuplo de histórias, observa-se que não há nenhuma relação aparente entre os personagens, mas a unidade temática do filme é garantida pela recorrência, nos enredos, por assuntos que giram em torno da vingança, da ira, do desajuste. Essa unidade temática é o que faz com que o filme não tenha os altos e baixos tão comuns nos filmes de episódios – a película é excitante e mantém uma espantosa regularidade, muito também devido à atuação dos atores, ao roteiro burilado e à direção segura. É também de se destacar que em nenhum dos episódios aparecem armas, que muitas vezes simplificariam e banalizariam o enredo, levando em conta o tipo de história desenvolvida. Se o filme fosse norte-americano, a presença de revólveres seria uma constância, dentro do culto às armas de fogo que os Estados Unidos empreendem mundo afora.

Na verdade, pode-se dizer que talvez seja a vingança (ou a sua faceta mais atenuada, o revide) o principal componente do cardápio, já que ela está presente em todos os seis segmentos: 1) “Pasternak” (avião); 2) “As ratazanas” (restaurante); 3) “O mais forte” (estrada); 4) “Bombita” (engenheiro); 5) “A proposta” (caseiro) (neste, a vingança está atenuada, embora se concretize ao final); e 6) “Até que a morte nos separe” (casamento). Sentimento universal e atemporal, a vingança caracteriza-se pela gana do ser humano de cobrar com juros humilhações sofridas por si ou por alguém próximo, sendo expressa constantemente na literatura e no cinema. Seja dito de passagem: quando penso em vingança, sempre me vem à mente “O barril de Amontillado”, de Edgar Allan Poe, que retrata um plano vingativo planejado cerebralmente e executado com precisão e perícia, pois que nunca será descoberto; neste sentido, o conto de Poe é a antítese das pequenas histórias da produção argentina, em que pouco é planejado com antecedência (exceção são os episódios “Pasternak” e “Bombita”), pois os instintos afloram sem quase nenhuma mediação intelectual.

Nos episódios supracitados, nota-se também a força da máquina, como no avião do episódio 1, e nos carros presentes em 3, 4 e 5; em especial nesses três últimos episódios, o automóvel constitui-se como personagem, que determina destinos, mapeia desilusões e serve de válvula de escape de uma vida robotizada e limitada. Um dos itens essenciais da sociedade de consumo, o uso do carro no filme descortina aspectos negativos dos veículos automotores: poluente, agressivo e antissocial, ocupa o espaço do humano nas cidades, sufocando, agredindo e matando, tornando a indiferença a regra geral.

Se o carro é um elemento importante para a compreensão do filme, o sexto e último episódio desmascara e ridiculariza outra instituição-símbolo da burguesia: o casamento, demonstração ritualizada de poder e riqueza das classes média e alta. A cerimônia de casamento como a alegoria da dissolução do mundo das aparências burguesas já foi tratada no cinema por Bergman, Altman e Vinterberg, por exemplo, mas aqui surge com rara e renovada maestria. A escalada vertiginosa de descobertas, xingamentos e humilhações entre noivo e noiva leva a uma redenção catártica, em meio a esperma, sangue, suor e lágrimas. É, na minha opinião, o melhor episódio do filme, juntamente com o inacreditável episódio 3, em que os dois homens protagonistas ficam reduzidos à lei do mais forte. Isolados geograficamente, perdidos em uma estrada deserta, a situação metaforiza a ausência de civilização e carinho da sociedade atual, pois os atos dos dois motoristas sucessivamente trazem consigo preconceito, rancor e raiva. Nesse episódio, verdadeira montanha-russa de emoções e agressões, não há como não lembrar o espírito de certas séries animadas clássicas, como Tom e Jerry e Papa-Léguas.

Aliás, as convenções burguesas, uma a uma, são atacadas no filme: no episódio 1, bullying e relações familiares, profissionais e afetivas se entrecruzam de forma ao mesmo tempo risível e desastrada; no 2, o representante indigesto da mistura de política e agiotagem termina da pior maneira possível; no 4, “Bombita” tem o seu “dia de fúria” (sim, a referência aqui é o filme homônimo de 1993 dirigido por Joel Schumacher e protagonizado por Michael Douglas), contra a burocracia inepta que quer controlar o cidadão, que quanto mais pacificado e humilhado melhor; ou no 5, em que nenhum dos estratos da sociedade demonstra possuir resquícios de pudor – patrões, empregados, profissionais liberais (advogados) e funcionários públicos (delegados) igualam-se, todos, na corrupção, na impunidade, na falta de moralidade e no desejo de enriquecimento rápido e fácil. Impossível não lembrar do disco Cabeça dinossauro (1986), dos Titãs, em que, igualmente, se observa o ataque a todas essas instituições – polícia, família, igreja, burocracia estatal etc.

No clássico álbum em quadrinhos O homem é bom? (Porto Alegre: L&PM, 1984), a pergunta do título tem uma resposta límpida e cristalina, ao longo de suas histórias: não, o homem não é bom, e o autor Moebius brinca com o sentido duplo da palavra – se o caráter do homem é ruim, também o gosto da carne humana não é aprazível ao paladar, conforme uma das histórias mostra. Em Relatos selvagens, a resposta, a cada momento, também vai se delineando no mesmo sentido daquele engendrado pelo desenhista francês: o homem não é bom, pois rompe o delicado e antinatural “contrato social” rousseauniano a todo momento, movido pela angústia, pela falta de ética, pela morbidez, pela violência. Inverossímil e absurdo por vezes (sem estragar a fluência da obra) na sua tragicomicidade, o filme faz com que em meio às cenas mais selvagens o riso saia incrédulo, resultado da ironia com que as situações são tratadas. A catarse, que vai se moldando ao longo de todo filme, atinge o seu auge no último episódio, com a grande cena final, que não pode ser contada para não estragar o prazer da recepção, para aquele que ainda não viu a película.

Ao fim, restamos completamente exauridos da violência que se apresenta em todo o filme, estupefatos com o fato de sermos da mesma raça das figuras ficcionais que desfilam na tela – “sim, eu poderia ter feito aquilo”, é um pensamento que vem à mente. Por enquanto não fomos nós, e a função higienizadora da arte vem à tona, mas na próxima esquina quem sabe eu ou você não caiamos na mais pura selvageria com alguém que cruze conosco. Será que o sucesso de público do filme na época do lançamento não se explica em parte pelo fato de ele desnudar o desejo do ser humano de, em certos momentos, se livrar completamente das amarras morais, físicas, comportamentais, para, livre finalmente do superego (conforme estruturado por Freud), tornar-se mais insuportável e mesquinho do que já é? Chegando então a essa situação, o único caminho é a autodestruição, fim talvez inexorável da civilização humana.

E é sobre isso que Relatos selvagens nos dá notícia.

Ascensão e declínio dos anticristos-alienígenas em uma aldeia inglesa


Mauro Nicola Póvoas

 



A minha modesta, mas honesta, coleção de DVDs e Blu-Rays anda um pouco empoeirada. Composta por filmes de minha afeição – clássicos norte-americanos e europeus, adaptações literárias, algo da produção nacional, um tanto de coisas de terror –, ela anda esquecida pela ascensão e consolidação do streaming, em especial a partir da pandemia.

De vez em quando, porém, desencavo um dos box “Obras-primas do terror”, ótima coleção da Versátil, com cada volume trazendo três DVDs, num total de seis filmes de terror clássicos, em especial da décadas de 1950-1970. O volume 1, que tenho aqui, traz produções dirigidas por Mario Bava, Roger Corman, Robert Wise, Alberto Cavalcanti, Jacques Tourneur e Wolf Rilla. Esse último, diretor alemão radicado no Reino Unido, é com certeza, dos seis, o menos conhecido, mas entrou para a história do cinema por pelo menos um filme, de origem inglesa: A aldeia dos amaldiçoados (Village of the damned), de 1960. Película direta, coesa, concisa (cerca de 75 minutos), a sua produção – cenários, locações, efeitos – é módica, embora conte com um elenco interessante, inclusive com George Sanders – ganhador do Oscar de melhor ator coadjuvante em 1951, por A malvada – fazendo o protagonista, o professor Gordon Zellaby.

A aldeia do título é a fictícia cidade britânica de Midwich, onde todos os habitantes sofrem desmaios em determinada manhã, vindo a acordar horas depois, no meio da tarde. Semanas depois, todas as mulheres férteis do lugar ficam grávidas, para alguns meses depois terem os seus bebês, todos parecidos entre si, possuidores de características como poderes paranormais, olhos esquisitos, pele e cabelos alvos[1], fios de cabelo com constituição molecular diferente, unhas mais curtas. O detalhe é que algumas mulheres nunca tinham tido relações sexuais ou estavam com o marido em viagem, o que abre para duas situações: uma, a dúvida na sociedade sobre uma possível relação às escondidas ou adúltera dessas mulheres; outra, a alusão bíblica a Maria, grávida de Jesus Cristo a partir da fecundação pelo Espírito Santo, até porque era virgem, como algumas das mulheres da aldeia do filme. O governo, temendo o alarde da população, oculta o ocorrido do restante do país, ao mesmo tempo em que tenta achar explicações e monitora casos parecidos no planeta.

A aldeia dos amaldiçoados situa-se no entrelugar entre o terror e a ficção científica (o trailer da época classifica o filme neste último gênero), inserindo-se, assim, na linhagem de filmes com invasões alienígenas produzidos em língua inglesa, iniciada nos anos 1950, no âmbito da Guerra Fria, entre os países ocidentais e a União Soviética, cujos exemplos basilares são O dia em que a Terra parou (1951), A guerra dos mundos (1953), Vampiros de almas (1956) e A bolha (1958). Todavia, embora o enredo forneça essa primeira possibilidade, a de uma investida extraterrestre[2] (metáfora da ameaça comunista-soviética que pairava sobre a América na época), surgem outras explicações divergentes sobre a origem das estranhas criaturas. Em segundo lugar, elas podem, por exemplo, ser o fruto de uma mutação genética, uma espécie de “evolução” do ser humano para esse novo patamar (aposto um café que Stan Lee viu este filme – os X-Men são de 1963...), criadas por partenogênese, um tipo de reprodução sexual em que um óvulo se desenvolve sem ter havido fertilização, comum de acontecer em plantas e artrópodes, mas não em vertebrados. Ou, ainda, terceira opção, ser o resultado da ação de um gás derivado de uma guerra química. Uma quarta possibilidade de explicação seria pura e simplesmente uma origem demoníaca das crianças, verdadeiros seres amaldiçoados (conforme aponta o título) vindos não se sabe de onde para castigar os seres humanos daquela sociedade. Seria por acaso a URSS, essa origem[3]?

O subtexto da ameaça comunista está já na cena inaugural – aparentemente prosaica, no sentido de mostrar o aspecto rural da cidadezinha – de um pastor conduzindo ovelhas. Mas pode-se pensar que o rebanho, na verdade, alegoriza as crianças, que serão caracterizadas a seguir como se fossem esses animais, portando-se como um grupo unificado e sem personalidade individual. O fato de elas possuírem sentimento coletivo, sem indícios de pessoalidade, aproxima-as do senso comum, que aponta como elementos constituintes de um país comunista a planificação e o não respeito às individualidades. A relação crianças/ovelhas fica mais óbvia ao se lembrar que o olhar dos infantes, quando seus poderes estão ativados, assemelha-se bastante aos olhos claros dos caprinos.

Um dado interessante é que o caso de Midwich não é isolado, pois são identificadas crianças semelhantes em lugares distantes ou exóticos. Dois desses eventos acontecem no mundo comunista: na fronteira da Mongólia com a União Soviética, todas as mães e as crianças foram mortas pelos pais, e nas montanhas do noroeste da URSS, elas começaram recebendo uma “educação superior”, nas palavras do militar inglês que expõe a situação, embora depois chegue a notícia de que os soviéticos destruíram o vilarejo com uma bomba atômica, para conter os pequenos, algo que o “mundo civilizado” não faria, pelo menos em um primeiro momento. O terceiro local é no norte da Austrália, em que todas as crianças misteriosamente morreram logo após nascer. Já o quarto episódio se dá no Polo Norte, onde os esquimós, como na Ásia, trucidaram as crianças louras, em tudo diferentes do biotipo local – de novo o “nós” x “eles”, pois os “selvagens” mataram-nas, os britânicos, não. Esse aspecto do contraponto entre civilização e barbárie surge na cena em que os aldeões, como em Frankenstein, querem vingar-se das crianças, linchando-as, mas são facilmente dominados por David (filho de Gordon e sua esposa, Anthea), espécie de líder do grupo.

Quem contrasta com o povo furioso do vilarejo é o professor Gordon, que com sua sofisticação intelectual, mais tarde, conseguirá vencer os poderes telepáticos das criaturas. Neste sentido, o professor, que dá aulas para os superdotados, é a pessoa esclarecida que nutre simpatia pelo senso coletivo e comunitário demonstrado pelas crianças. Na sequência, porém, Gordon sucumbe e se dá conta que só o extermínio delas, que representam o mal em seu estado mais puro, resolverá a questão e evitará que elas dominem a raça humana.

Como a solução final e radical implica a sua morte também, o professor faz um exercício para bloquear os pensamentos das crianças, imaginando um muro, pois os poderes extra-humanos delas (controle das ações de terceiros; ler pensamentos; inteligência fora do comum; crescimento físico e intelectual acelerado; pensamento conectado entre elas) descobririam o seu intento. Advém daí uma das cenas mais famosas do filme, a parede de tijolos mental que impede a visualização do plano de Gordon. Ele atinge o seu objetivo, com o final mostrando a importância dos olhos na constituição das crianças, pois são somente eles que o espectador vê, sob o fogo que a tudo consome. A ameaça comunista (ou alienígena), para o bem de todos, é detida a tempo, embora tenha causado algumas baixas no vilarejo, normais nestes casos.

O filme, passados mais de sessenta anos, continua bom. Resistiu ao tempo; um clássico, portanto. Ele se encaixa nos padrões cinematográficos da época para filmes de terror, com apenas três ou quatro mortes, sem mostrar sangue ou corpos mutilados, ou seja, nada do excesso dos filmes do gênero, que se acentuou a partir dos anos 1970. É uma produção estranhamente fria em sua abordagem, de modo que o espectador não estabeleça laços de compaixão com o destino fatal das crianças e com o fato de que, ao fim e ao cabo, um pai mata o seu próprio filho.

Cabe dizer, ainda, que A aldeia dos amaldiçoados se insere numa segunda tradição de filmes, também extensa, e bem mais perturbadora do que a listagem anteriormente relatada, aquela das películas que tratam de invasão de ETs, no influxo do pós-guerra. Essa outra linhagem é a das histórias cinematográficas que trazem adolescentes, crianças ou bebês “do mal”, filmes nem todos exatamente de terror: Os inocentes, O bebê de Rosemary, O exorcista, Cría cuervos, Colheita maldita, O senhor das moscas, A órfã, Precisamos falar sobre Kevin, A profecia[4], sendo este, talvez, o mais famoso, por abordar o tema do anticristo, entrevisto neste Aldeia.

 

Em tempo

A aldeia dos amaldiçoados, com o tempo, fruto de sua perene presença no imaginário, entranhou-se na cultura popular. Por exemplo, entre essas menções, há um episódio do seriado Os Simpsons em que crianças iguais à de Midwich assombram Springfield, e o grupo britânico de rock Iron Maiden gravou a música “Children of the damned”, presente no disco The number of the beast, de 1982, e que alude ao filme. Além disso, o original ganhou pelo menos dois filmes que dialogam diretamente com a película de 1960: A estirpe dos malditos, de 1964, e A cidade do amaldiçoados, de 1995.

Não exatamente uma continuação, A estirpe dos malditos (Children of damned), de Anton Leader, usa o mesmo mote de 1960 para contar uma outra história – embora nos créditos se aponte que o filme é uma sequência de Aldeia. À semelhança do original, os olhos das crianças brilham, além de possuírem os mesmos poderes de antes: superinteligência e a possibilidade de uma saber o que a outra pensa. Diferentemente de 1960, elas não são parecidas entre si, já que cada uma apresenta características étnicas distintas.

Agora, são seis crianças, cada uma proveniente de um lugar do mundo: Inglaterra, Estados Unidos, União Soviética, China, Índia e Nigéria, o que garante a diversidade e alude a uma fraternidade entre as nações que não se dava no mundo real, pois todas estavam envolvidas, naquele momento, com a Guerra Fria. O filme também traz um curioso embate entre duas visões dos dois protagonistas adultos: o psicólogo, mais vinculado às ciências humanas, às emoções e às sensações, e o geneticista, com seu olhar técnico sobre o corpo e sua constituição.

O roteiro apresenta as crianças de forma ambígua, pois aparentemente não são humanos, pois não têm pais, sendo talvez criados por partenogênese – termo que aparece em toda a série de filmes. Por outro lado, levanta-se a questão de que não são alienígenas ou mutantes, mas sim seres pertencentes à raça humana, sendo na verdade pessoas 1 milhão de anos mais avançadas, em relação ao presente.

Interessante notar que as crianças se escondem numa igreja (de novo, um aspecto que alude à religiosidade, como se vê subliminarmente no primeiro filme), onde a maior parte da história se desenvolve, dando a ideia de que a partir daquele lugar sagrado começariam o domínio do mundo e a sua respectiva salvação, tendo em vista a superioridade cognitiva e intelectual das pequenas criaturas. Ao fim, porém, o templo religioso não impede a aniquilação de todas as crianças, que morrem nas mãos do poder militar dos homens.

Por sua vez, o remake A cidade dos amaldiçoados (Village of the damned), dirigido por John Carpenter, traz alguns atores-símbolos do cinema de aventura e ficção, como Christopher “Super-Homem” Reeve (um de seus últimos trabalhos antes da queda de um cavalo que o deixaria tetraplégico) e Mark “Luke Skywalker” Hamill, em uma homenagem de Carpenter a esses dois gêneros, cultivados em sua paradigmática obra.

Mais ou menos seguindo o roteiro original, Carpenter faz pequenas alterações na história de 1960, com fins dramáticos, entre as quais destaco:

. Midwich agora é uma cidade norte-americana;

. o protagonista, um doutor, não estava na cidade quando do “blecaute”, como é chamado, no filme, o episódio. Um dado igual, porém, é que ele se dedicará a dar aulas às crianças, no decorrer da narrativa;

. a esposa do médico, mãe de um das crianças, se mata;

. o doutor e sua esposa não têm um filho, mas uma filha, em um protagonismo feminino do filme novecentista que não se verifica em 1960;

. a presença de uma cientista, que substitui, ao mesmo tempo, o membro do governo e o cunhado do filme original e o geneticista da “sequência” de 1964;

. não há a preocupação em se explicar tanto os fatos ocorridos, como, por exemplo, por qual motivo elas crescem tão rápido. Em todo o caso, há explicações “científicas” para o acontecimento, como a já aludida partenogênese;

. não se dá tanta ênfase às crianças de outros países, amenizando a ameaça comunista ou alienígena, elemento forte no filme de 1960. O elo interplanetário, no entanto, se dá pela aparição de um feto com aparência extraterreste, morto e guardado em formol pela cientista, numa situação pouco explicada no filme.

Há muito mais mortes sanguinolentas na refilmagem de John Carpenter – pessoas se suicidando, sendo carbonizadas ou morrendo cruelmente –, até para atender aos interesses do público da época, já habituado a filmes mais violentos. Bom exemplo é a cena do carro que bate em um muro, por influência das crianças – discreta em 1960, apresenta-se explosiva em 1995.

Outro momento que está em 1960 e se repete em 1995, é o final, demonstrando pequenas diferenças. O muro do original é substituído pela imagem de um oceano, além da presença de uma das mães na cena, o que interfere na tensão, maior no original, já que lá a disputa psicológica era somente entre o doutor/professor e as crianças.

Mais para o fim, há uma cena curiosa, que expõe a visão de Carpenter, muitas vezes crítico da sociedade norte-americana (veja-se, por exemplo, Eles vivem [They live], filmado uns anos antes, em 1987). Estou falando da bizarra sequência em que policiais, chamados para resolverem a situação, acabam se autotrucidando, visão irônica das forças estatais de segurança, aquelas mesmas que deveriam proteger os cidadãos, mas que, na cena, lutam entre si.

O filme de 1995 é bom, afinal é dirigido por Carpenter, um dos mestres do terror contemporâneo. Mas a sensação que resta, ao final, é a mesma que surge todas as vezes em vemos uma refilmagem: qual o sentido de reatualizar um clássico? Em geral, isso significa fazer um filme que será malfadado (Psicose, por exemplo) ou que não chegará no nível do original (no caso aqui em tela).



[1] Aqui, uma ambiguidade: de um lado, o filme poderia ser eventualmente apontado como racista, por colocar a etnia branca como aquela responsável por uma espécie de evolução dos seres humanos; por outro, ao colocar essas crianças brancas como más e destruidoras, o roteiro confirma aquilo que se sabe historicamente, caso se lembre das inúmeras guerras na Europa, ao longo dos tempos; do massacre dos povos originários nas Américas; e da escravidão negra, episódios perpetrados, em geral, pelos brancos. Como se verá a seguir, essa questão se dilui na “sequência” A estirpe dos malditos, pois o grupo ali reunido compõe-se de crianças brancas, negras e asiáticas.

[2] Importante pensar que se a perspectiva da invasão interplanetária fosse levada a cabo, traria em seu bojo a constatação, nada agradável, de que as mulheres teriam sofrido um “estupro interseres”, no sentido de que foram relações não consensuais.

[3] “Crianças do mal” advindas de algum dos países comunistas, que em geral não estimulam a prática religiosa. Eis um retrato simplificador, embora eficiente, que pode ser elaborado a partir do filme, emulando o que se pensava, no restante da Europa e nos EUA, do Leste europeu.

[4] O quinto episódio da segunda temporada da ótima série Eli Roth’s History of Horror trata desse subgênero dos filmes de terror, exatamente aqueles que trazem “crianças sinistras” como personagens, citando inclusive muitos dos filmes listadas acima. Vale a pena assistir.

13 setembro, 2022

Sobre a recepção de Jean-Luc Godard nas salas de cinema

Hoje, 13 de setembro, se foi o velho Godard, aos 91 anos. Aqui, uma homenagem ao grande diretor franco-suíço, em um escrito de 2015. Não mudei nada no texto, mesmo que não concorde com uma ou outra coisa que esteja ali. Foi publicado originalmente no antigo blog que mantínhamos, o “Cinema em Prosa”, hoje desativado. O “Conversa de Cinema” continua, meio devagar, faz quase um ano de sua última postagem. Quem sabe em breve voltamos com mais críticas e comentários cinematográficos...


Mauro Nicola Póvoas

 

Este texto vai para o Zé.

 


Juremir Machado da Silva, no Correio do Povo de 9 ago. 2015 (domingo, p. 2), na crônica “Allen e Godard”, diz que este último, “papa da chamada Nouvelle Vague, continua a fazer filmes para si mesmo e para alguns fiéis. Ele sempre quis fazer pensar. Sempre vejo. E durmo. Mas não deixo de ver. É uma experiência antropológica”. Interessante constatar que a ironia de Juremir joga com o fato de a suposta falta de linearidade dos últimos filmes de Jean-Luc Godard ser um soporífero potente aos espectadores incautos. No dia 12 ago. 2015 (quarta-feira, p. 2), Juremir volta rapidamente ao assunto, para decretar: “Hoje, só três nomes ainda me fazem sair de casa: Woody Allen, Quentin Tarantino e Jean-Luc Godard. (...) Detesto ver sempre o mesmo velho filme de Godard”. De novo, no fio da navalha entre o elogio e a crítica, o cronista deixa ambígua a sua posição sobre a obra do cineasta, acostumado, aliás, ao “ame-o ou deixe-o”. Não parece, realmente, ser possível a mediania em torno de Godard.

Esses dois textos de Juremir, mais o fato de eu ter visto recentemente um filme de Godard, fizeram com que eu pensasse um pouco sobre a minha relação com o diretor francês, para alguns gênio, para outros louco e para uns simplesmente um chato.

(Não tenho muita paciência de baixar filmes para vê-los em um notebook ou tablet. Acho, quixotescamente, que filmes precisam ser vistos pelo menos numa tela de mais de 20 polegadas. Na verdade, para mim, filme é para ser visto na telona, com gente respirando ao lado e rindo e incomodando e comendo pipoca e resfolegando e fungando. Senão não é cinema. Podem dar o nome que quiserem, mas ver filmes na mesma sala em que se come & dorme & se vê o Silvio Santos & se joga videogame (enfim, onde se vive) é outra coisa. Sendo assim, prefiro não ver um filme, qualquer filme, se as condições de pressão, temperatura e legendas não forem as mínimas, restando-me somente ficar na ignorância e não ver a maior parte da produção fílmica atual.)

Feito o pequeno circunlóquio, volto a Godard: o que assisti dele, vi no cinema. Ver um filme no cinema, experiência epifânica, sociológica e profundamente humana.

Um dia, acho que lá por 1997, passou Para sempre Mozart (1996) na Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ). Confesso que o filme me causou certo embaraço e confusão, mas gostei, afinal qualquer alusão a Mozart sempre me agrada (alô, Rudinei!). Era o primeiro Godard que eu via, com sua narrativa descosida, e na saída, ainda meio tonto, encontrei Zé Luís, porto-alegrense que era meu colega no Mestrado em Teoria da Literatura na PUCRS. Ele era da “casa” (isto é, de Porto Alegre), estava pois, eu achava, acostumado a ver filmes do Godard no cinema, não um interiorano como eu que pegava no cinema só a rapa do tacho, alguma coisa pelo videocassete e muuuuita coisa pela TV (quantas vezes fiquei acordado para ver a Sessão Coruja?). Rapidamente troquei palavras com ele na saída. A partir daí, tenho no Zé um amigo, com o qual há sempre assunto para a conversa, desinteressada ou interessada. Um cara que vai ver Godard no cinema, bom sujeito é. Ele deve ter pensado o mesmo de mim, tanto que até hoje a amizade continua. Graças a Godard? Talvez.

Uma outra vez, acho que lá por 1998-1999, vi o anúncio de um festival de Godard na CCMQ. Era época de muito estudo e pesquisa, dissertação para terminar, trabalhos, disciplinas, sempre alguma coisa pendente. O mundo acadêmico, doce por um lado, terrível por outro. Mas pensei: é um festival do Godard! Quando que vou poder ver filmes dele assim, de novo? Lembremos que era uma época pré-Internet, que baixar filmes e YouTube eram coisas de um tempo muito distante, talvez para meus netos.

Bom, aí, nesse festival, consegui ver:

O desprezo (1963) – Brigitte Bardot no auge. Godard e as suas belas atrizes... Gostei muito, até porque filmes metalinguísticos que abordam o mundo do cinema sempre me conquistam. Na verdade, depois pude constatar, O desprezo era uma narrativa até bem “normal”, levando em conta os padrões godardianos.

Alphaville (1965) – filme de detetive misturado com ficção científica. Estranho.

A chinesa (1967) – adorei esse filme, embora a confusão estabelecida na minha cabeça. Em tempos de FHC, pré-Lula, em que talvez ainda fizessem sentido reuniões para discutir Mao, o filme causou um nó na minha cabeça esquerdista (hoje, ela ainda é), com a presença certeira da ironia do diretor, sempre desconstruindo aquilo que a princípio consideramos indiscutível.

Me lembro que nessa fase minha alma e meu coração estavam quase todos encharcados nas lides acadêmicas, então talvez não tenha aproveitado esses três títulos como poderia ou deveria. Queria rever todos, e mais outros, na telona.

Depois, num ano que não sei mais precisar, li que a Sala Redenção da UFRGS passaria Acossado (1960) num dia qualquer, dento de alguma mostra. Bah, o primeiro longa do enfant terrible, com Seberg e Belmondo. Tinha que ver isso. Arrumei minha vida de estudante de pós-graduação e lá me fui. A cópia era ruim, mas a película, com seus chiados e riscos, marcou fundo, com as inovações da gramática cinematográfica que o diretor trazia à época, com a atitude de desbunde proposta pelas personagens, as quais circulavam pela atmosfera libertária parisiense da década de 1960.

Passaram-se muitos anos, 2009, talvez; eu estava em Lisboa para um evento e tinha duas tardes livres. Passei pela Cinemateca Portuguesa, para ver a programação, pois sempre havia coisa boa na casa de cinema lisboeta. Qual a minha surpresa: no dia seguinte passaria O demônio das onze horas (1965), a tradução brasileira maluca para Pierrot le fou, com, de novo, Jean-Paul Belmondo. Fui com certa ansiedade ver o filme. Uma quinta, ou terça-feira, não lembro, às 15h, quem estaria presente para ver Pedro, o louco (título português)? Será que só eu pagaria ingresso para ver mais um Godard da minha vida? Para minha secreta alegria, o cinema estava cheio, repleto de portugueses, ou não, sequiosos para ver o filme – o discreto charme da telona, esse obscuro objeto de desejo. Assim, para sempre, e intimamente, respeito o público de cinema português. Podem me perguntar sobre o filme, que responderei que pouco lembro dele, mas na hora, no momento, adorei, talvez seja aquele que mais gostei do diretor. Coisas da recepção cinematográfica, coisas de se ver um filme com sala cheia, ainda mais numa cinemateca.

Agosto de 2015. Godard estava distante de minha vida, talvez nem me lembrasse dele. Primeiro filho, diversas atividades acadêmicas, sempre tanta coisa para fazer, sempre na correria. Estávamos no Shopping Pelotas para comprar qualquer coisa, depois almoçar. “Deixa eu pegar o folheto com a programação”. Acostumado com o trash hollywoodiano de sempre, quase não acreditei quando vi num canto da folha: “Adeus à linguagem 3D. Legendado. Todos os dias. Sala 4”, com a seguinte sinopse: “Um homem e uma mulher vivem um relacionamento marcado pela falta de comunicação, já que cada um fala uma língua diferente. Então, o cachorro deles decide intervir”. Fiquei pasmo, não com o deliciosamente tosco, incorreto e inverossímil resumo acima transcrito, mas com o fato de estar passando o filme 3D do Godard ali. Pedi à Marina, pois achava que o filme só ficaria uma semana em cartaz: “Liga para a tua aluna que fica de babá do Ramiro nos fins de semana e vê se ela pode hoje, pois aí já compro os ingressos agora mesmo” (o filme era de noite). Sim, a Melissa podia, e fui comprar as entradas. A moça da bilheteria, quando falei que queria dois tíquetes para o Adeus à linguagem, me comentou que, a pedido da direção do cinema, tinha que avisar que o filme era “independente”, ou seja, o som e a imagem apresentavam uma qualidade abaixo do que se esperava. Ri interiormente com o aviso, pensando se a moça conhecia Godard; se não conhecia, não era culpa dela, afinal, quem conhece Godard?

Agora, aquilo para o qual ela alertou é exatamente o grande ganho do filme, irritante na sua distorção de som e imagem. As cenas, em 2D e 3D, vão se acumulando e se atravancando no mesmo espaço, e o espectador vai ficando impaciente e incomodado, não sabendo se é culpa da projeção, da cópia, dos malditos óculos 3D. Não sei se é porque já uso óculos no dia a dia, mas não gosto de filmes 3D, pois aí se fica com seis olhos! O 3D não acrescentou ainda quase nada à arte cinematográfica, a não ser a histeria por parte dos diretores em jogar coisas em nossa direção – a exceção à regra é Pina, de Wim Wenders. Gravidade, As aventuras de Pi e A invenção de Hugo Cabret sobreviveriam muito bem sem o 3D a eles impingido, embora existam nesses filmes algumas soluções interessantes e belas imagens a partir do uso da tridimensionalidade.

Adeus à linguagem (2014) inova ao investir em ser assumidamente um antifilme, que causa estranhamento e desconforto ao espectador, ao fazer do 3D elemento disfórico e distópico, e não a salvação anunciada de uma arte, a sétima, ameaçada pela pirataria e pela insegurança das ruas. O seu roteiro às avessas ajuda a mostrar a incongruência de se contar histórias num mundo cada vez mais violento e sem espaço para o diálogo. A projeção desfocada dá adeus à linguagem cinematográfica, ou melhor, a todas as linguagens que poderiam contar as histórias ainda passíveis de serem narradas, pois já não há mais línguas, símbolos, escritas para tanto, até porque o nível de incomunicabilidade das pessoas, alerta o filme, no limite, levará a humanidade à imobilidade e à passividade. O cachorro da ficção (na verdade, o cão de estimação de Godard), como a Baleia em Vidas secas, parece o ser vivo mais atento a tudo à sua volta.

Que me recorde, ninguém saiu do cinema pelo meio, e nem havia tão pouca gente assim na sala, isso já é um ganho num filme tão fora do “esquema”. Deveriam ser aqueles fiéis citados por Juremir, eu incluído. E há mais alguns por aí, pois o filme ficou mais uma inacreditável semana em cartaz, em meio a Pixels e Missões impossíveis. Do que será a “culpa” por tanto “sucesso”? Do 3D, com seu apelo comercial, que na verdade é uma jogada do mestre francês, uma verdadeira “pegadinha” para cima dos desavisados; da temática que envolve cachorro, sempre um animal com um chamativo forte junto ao público; do chamariz da nudez; do fato de ser um filme pequeno (1h10), sem perigo de cansar, portanto?

Bons tempos, em que se precisava sair para a rua para ter acesso a determinadas aspectos culturais. Espera aí, será que são bons tempos, ou maus tempos? Atualmente, tem-se tudo a um clique no mouse ou a um toque na tela. Para mim, isso é muito bom, isso é muito ruim.

E hoje já não moro mais em Porto Alegre: lá ainda passa Godard em festivais que duravam duas ou três semanas? E na velha capital portuguesa, será que as tardes ensolaradas são preenchidas por aposentados e estudantes assistindo a um Godard do século passado?


27 outubro, 2021

Mais algumas notas sobre "Crepúsculo dos deuses"


Daniel Baz dos Santos[1]

 



Levado pelos teus comentários, Mauro, assisti de novo ao impressionante Crepúsculo dos deuses. Nas linhas seguintes, tentarei esboçar algumas impressões que tive, lamentando de antemão o pouco tempo disponível para fruir uma obra tão cheia de possibilidades.

A genialidade desta obra começa nos seus créditos iniciais. Vemos o nome da fatídica rua no cordão da calçada, numa primeira imagem-síntese de uma das temáticas centrais da obra, ou seja, o glamour associado à decadência. Seguindo este lampejo brilhante, somos forçados a ler os nomes dos atores escritos na calçada enquanto a câmera se movimenta até o espaço da ação. Aqui se tem uma analogia muito bem construída referente à oscilante verticalidade do sucesso. Familiarizamo-nos já nos créditos com a ideia de que os “astros” podem facilmente descer ao mais baixo do mundo. E pensar que Wilder imaginara um começo diferente, em um necrotério, onde os mortos contariam a situação na qual morreram, dando a deixa para Joe Gillis, o personagem de William Holden – introdução abandonada devido às gargalhadas da plateia-teste.

Há durante todo o filme uma constante reflexão entre o verdadeiro e o falso, entre a verdade e a mentira, tendo como eixo a temática da representação. Tudo começa com o contrassenso de Gillis que, estando morto, promete que irá relatar “The whole truth” e lança uma piscadela ao público do cinema, ao dizer que, se eles buscam a verdade, vieram ao lugar certo.

O cinema aqui é literalmente uma projeção dos desejos de todos, algo que já foi dito por Méliès, Godard e, há alguns poucos anos, por Slavoj Zizek, no seu O guia pervertido do cinema. O cinema é perverso, pois além de nos obrigar ao desejo, sugere que seu espaço natural é o das representações, nos forçando a desejar o que elas figuram. Logo no início do filme, ironicamente, o espaço da representação se associa ao espaço da mentira e o roteiro parece que lida o tempo inteiro com esta ambivalência, no terreno-limite entre a representação e o real. Temos a mentira contada por Gillis a respeito do carro no início do filme; a revisora de roteiros que fala mal do filme do autor sem saber que ele está presente; o produtor que recusou ...E o vento levou, revelando uma atitude contrária ao que se espera dele. Enfim, nada é exatamente o que parece ser...

Além disso, nesta sequência inicial, sugere-se a crise do cinema, entre a livre expressão do autor e as exigências do mercado. O produtor Sheldrake (Fred Clark) começa um devaneio a respeito das possibilidades do filme sobre beisebol e, conforme se aprofunda nesta história absurda, deita em um sofá, acomoda-se como quem sonha acordado (mesma posição de Gillis, quando Norman representa suas “bobagens” de cinema mudo para ele) e só é interrompido quando o mundo real (capitalista) viola da forma mais cruel sua criação semionírica: Gillis lhe pede dinheiro emprestado.

A apresentação de Norma Desmond também segue por este caminho. O plano em que atriz conhece o narrador se sustenta em um zoom inútil, tentando superar o obstáculo[2] de uma veneziana que impede a conexão entre o externo e interno, o que, mais uma vez, termina com Norma confundindo Joe Gillis com outra pessoa. Mais uma sacada genial: a única dimensão da figura de Norma que apreendemos com clareza neste momento é a sua voz. A voz que, como ela revela minutos a seguir, matou o cinema. Neste universo de aparências flutuantes, somente a ingênua Betty tenta separar o terreno da verdade e da mentira com clareza, mas quando deve julgar a ficção de Gillis, o faz pelo seu grau de sinceridade, escolhendo o único trecho biográfico de sua história para ser trabalhado.

Interessante também como o filme usa dos recursos sonoros para interromper ou torturar a protagonista. A cena mais emblemática é justamente aquela em que ela interpreta Chaplin e é brutalmente interrompida por um telefone. É tragicômico também que DeMille ande a todo o momento com um jovem que segura um microfone, mesmo quando não estão gravando, durante toda a sequência nos estúdios da Paramount.

Falaste com propriedade sobre as categorias metalinguísticas, não tenho mais a dizer. Termino com uma pergunta: uma vez mencionaste a inverossimilhança em Kill Bill [nota do editor: esse texto será publicado em breve no blog]. Assim, como Max sabia que Gillis iria a casa, a ponto de arrumar a cama para recebê-lo? Seria ele tão onipresente? Enigmas que só as obras-primas produzem!

PS 1: Buster Keaton não está totalmente mudo. Tem duas falas durante o pôquer e elas são iguais: “Eu passo”. Como se recusasse a jogar este “jogo” novamente.

PS 2: agradeço-te por rever este filme. A fantasia de Norma, plasmada num espaço cheio de fotografias suas, é uma imagem perfeita de uma das definições de Luís Costa Lima, quando este se refere à ficção do próprio eu, na qual nada escapa à alçada do individual e, por isso, está fadada ao fracasso, pois não se relaciona com o imaginário de outros seres humanos. É lógico que pensei em exemplos literários (a começar por Quixote), mas esta é também uma possibilidade intrigante.



[1] Recomenda-se ler, primeiro, o texto abaixo deste.

[2] Outra cena em que aparece um obstáculo que impede um desenvolvimento maior da interação é aquela em que Norma e Joe conversam francamente pela primeira vez, com ela falando de sua história sobre Salomé: ambos estão separados por uma mesa coberta de páginas e páginas de ficção histórica.

Dez comentários sobre "Crepúsculo dos deuses"

 

Mauro Nicola Póvoas

 



Outro dia, no Telecine Cult, revi Crepúsculo dos deuses (Sunset blvd., 1950), de Billy Wilder, grande diretor. Já tinha visto esse filme há muito, muito tempo, e me lembro que na época gostei. Agora, pensei: está na hora de rever a película. É um grande filme, entra folgado em uma lista particular que está eternamente em construção, com os meus 25 filmes de todos os tempos (desisti de um lista de somente 10). A seguir, alguns dez pequenos comentários sobre o filme, que queria dividir com os interlocutores:

1) Além de tudo que apontarei a seguir, o filme me marca por um dado sentimental e pessoal. Meu pai, Aldo Póvoas, foi um fanático por cinema, bombardeado pelo star system hollywoodiano das décadas de 1940 e 1950. Ainda guardamos, meus irmãos e eu, uma coleção de mais de 130 fotografias enviadas para ele pelas maiores atrizes dos Estados Unidos, a maioria assinadas. Uma cena em especial me emocionou no filme: Norma Desmond (Gloria Swanson) assinando, ela mesma, as fotos para enviar aos fãs. Depois sabemos que não há fãs, era tudo armação do mordomo-diretor-marido. Ainda neste diapasão, outro dia vi um episódio de Além da imaginação (Twilight zone), de 1959, que homenageia Crepúsculo dos deuses. E qual a atriz principal do episódio? Ida Lupino, a atriz preferida do meu pai, que emula Gloria Swanson na série. Tudo se conecta!

2) Filmes com caráter metalinguístico são para mim invencíveis; mesmo os fracos, como o Nine, com Daniel Day-Lewis, merecem ser vistos. Lembro de Quero ser John Malkovich, Adaptação e Sinédoque, Nova York, de Spike Jonze/Charlie Kaufman; Noite americana, de Truffaut; 8 ½, de Fellini; Cidade dos sonhos, de Lynch; Era uma vez em... Hollywood, de Tarantino etc. A visita de Norma ao set da Paramount comandando por Cecil B. DeMille está entre as grandes cenas do cinema americano. O filme consegue equilibrar de forma genial uma das mais lindas homenagens ao cinema, enquanto arte e entretenimento, ao mesmo tempo em que, das entranhas da indústria, traz uma das mais impiedosas críticas a essa mesma indústria.

3) A presença – claro que muda – de Buster Keaton jogando cartas é outro toque genial. A homenagem ao cinema sem som e ao cinema em geral está em tudo, como em Norma Desmond, lá pelas tantas, imitando Charlie Chaplin.

4) Tenho uma velha tese: os filmes clássicos, para atingirem esse status, necessitam de grandes finais. Que final o deste filme, entre os maiores do cinema, com Norma Desmond descendo as escadas, já sem razão – ou está ela somente fazendo a sua última grande última? E o começo não fica atrás, com a câmera fixada no asfalto da Sunset Boulevard, até que o espectador chegue ao corpo afogado na piscina. A partir daqui, enumero dois itens intertextuais, o 5 e o 6.

5) Impossível não lembrar do machadiano Memórias póstumas de Brás Cubas, já que todo filme é narrado por um morto, o que possibilita um olhar acurado e distanciado sobre aquela máquina de moer carne que é Hollywood.

6) Como não lembrar também de Cidade dos sonhos (Mulholland Dr.), filme de David Lynch que também traz um olhar carinhoso e/ou impiedoso sobre o cinema hollywoodiano, e que igualmente tem uma rua de Los Angeles no título?

7) Tecnicamente, o filme é perfeito: a fotografia em preto-e-branco, o roteiro, a música, os atores, a direção do sempre competente Billy Wilder. É o auge de uma indústria, a do cinema.

8) Até por conta do que comentei acima, não é de se estranhar que o filme tenha ganhado três Oscars: direção de arte, música e roteiro. Concorreu a filme, diretor, atriz, ator, atriz e ator coadjuvantes. Fiquei pensando: como é que não ganhou melhor filme?! Aí fui ver quem ganhou em 1951: A malvada – calei-me. Era uma época de deuses no mundo da tela. Por exemplo: o Oscar de 1949 foi para o Hamlet de Laurence Olivier.

9) O mordomo Max, vivido grandemente por Erich von Stroheim, é um dos mais importantes personagens da trama, pois na verdade ele que é o diretor da casa e da vida de Norma (na verdade, não será o diretor mesmo do filme?), e até o fim ele faz essa função. O filme é mesmo para cinéfilos (tanto que os personagens são roteiristas, atores, diretores), com várias alusões cinematográficas, como as já aludidas de Chaplin, Keaton e DeMille.

10) Nancy Olson, a roteirista ambiciosa Betty Schaefer, que é a namoradinha do cínico e folgazão Joe Gillis (William Holden), está viva ainda, em outubro de 2021, com 93 anos (nasceu em 1928, mesmo ano, aliás, do meu pai – estou dizendo, tudo se conecta...). No filme, ela faz uma menina cheia de sonhos, que tem exatamente 22 anos (idade da atriz em 1950), o que reforça uma atmosfera ambígua do filme: por um lado, traz o onírico, matéria-prima do cinema, mas também, por outro, reforça uma verossimilhança “estranha”, como se todos estivessem fazendo os papéis que protagonizam na realidade: DeMille, o diretor; Swanson e Keaton, os decadentes; Olson, a que está começando a carreira etc.


13 junho, 2021

Morrer e renascer em uma alvorada crepuscular

 

Mauro Nicola Póvoas



Estreou há poucos dias, nos cinemas e em streaming, Alvorada, documentário de Anna Muylaert e Lô Politi que pretende perscrutar, ao mesmo tempo, os recônditos do Palácio da Alvorada e a interioridade da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016). O crítico José Geraldo Couto chama a atenção, em seu blog de cinema hospedado no Instituto Moreira Salles, para o fato de o filme operar sob o signo do crepúsculo, embora o título envergue a palavra “Alvorada”. Ótimo paradoxo, que explica muita coisa.

A película compõe-se de cenas, muitas vezes tensas, que giram em torno de reuniões e conversas com a presença de políticos, advogados e assessores, sempre nas dependências da morada oficial dos presidentes do Brasil, entre 17 de abril (a votação na Câmara do impeachment, com placar de 367 votos a favor da destituição e 137 votos contra) e 31 de agosto de 2016 (a votação no Senado, com 61 votos a favor e 20 contra). Neste período de quatro meses e meio, Dilma encastelou-se no Palácio, articulando a busca de um desfecho favorável à sua permanência no cargo, o que, como se sabe, não aconteceu. Eleita com 54,5 milhões de votos, o golpe se consumou no último dia de agosto, mês aziago para presidentes da República brasileira; por exemplo, foi em agosto que Getúlio se suicidou, em 1954, e que Jânio renunciou, em 1961.

E falo golpe conscientemente, pois resta claro, cinco anos passados, que houve um conluio, de caráter misógino, entre elite, mercado, judiciário, mídia e políticos de centro-direita, com a intenção de abrir caminho para que, em 2018, um nome do PSDB triunfalmente ganhasse a eleição, a fim de, depois dos treze anos de PT no poder, ser possível reimplementar a agenda neoliberal de desmonte do Estado brasileiro. E a desculpa perfeita para o impedimento foi a das “pedaladas fiscais”, manobra contábil corriqueira entre os governantes, nunca admitida, antes, como crime de responsabilidade. O plano fez água pelo surgimento do fator Bolsonaro, que confundiu tudo, e entre o PT de novo e o “mito” (de pés de barro), o grupo aquele (elite, mercado etc.), como estava no Inferno, abraçou o Diabo.

O filme tem dois tipos de imagens, aquelas captadas com a naturalidade e a espontaneidade possíveis na situação, e a entrevista com a presidente. Essa conversa, vista por partes ao longo do filme, traz o melhor de Dilma, pois é quando ela se expõe um pouco mais, sem a crispação observada nas reuniões ou nas entrevistas dadas a órgãos de imprensa.

No todo, o que vem à tona é uma mulher “dura na queda”, que diz nunca se desesperar, embora estude as pessoas para ver o que as levam a cair, até para poder aprender com essa situação. A sensação geral é de uma pessoa solitária, de poucos sorrisos e amigos, sem jogo de cintura para transitar por um mundo tão masculino como o da política brasileira. A falta dessa capacidade de diálogo, junto com o incômodo dos homens por uma presença feminina em cargo tão prestigiado, foi um ingrediente fatal para o desencadeamento do processo de afastamento.

Estranhamente, como o filme demorou para vir a público – cinco anos depois dos fatos relatados –, o que ali está registrado parece já distante, tanto que nos lembramos que, naquele momento, a nossa preocupação maior era o “Fora, Temer!”. Incrível, mas o documentário lembra que se era ruim com o vice alçado ao poder, o ambiente ficou irrespirável com o sucessor.

E como o lançamento se dá agora, em plena vigência do mandato de Jair Bolsonaro, a comparação com o atual morador do Alvorada paira sobre toda a produção, até porque o começo do filme traz a voz do então deputado federal que, fantasmaticamente, ecoa em nossos ouvidos, com o detestável discurso proferido quando do seu voto pró-impeachment, em nome da família, de Deus, de Brilhante Ustra, a favor da tortura e tudo o mais. Uma falta de decoro, que não foi punida devidamente naquele momento, o que causaria o corte do mal pela raiz. Mas, paradoxalmente, mesmo com aquela tenebrosa fala (ou por causa dela?), ele foi eleito. Que país é este, afinal, em que as pessoas votaram em alguém racista, fascista, homofóbico, misógino, violento, agressivo, defensor de milícias? E para completar o cardápio, viria a se revelar, mais tarde, um genocida.

Assim, um aspecto impossível de passar despercebido é a comparação de Dilma Rousseff com Jair Bolsonaro. Nenhum dos dois é um campeão da retórica, pelo contrário, mas o estofo cultural das citações de Dilma, nas entrevistas, é interessante de ser anotado – Guimarães Rosa, John Milton, Hannah Arendt, Carlos Gardel. Se pensarmos em Jair, provavelmente ele nem saiba quem são os quatro citados, evidenciando assim que a boçalidade é o alicerce do governo federal.

Outro elemento que se sobressai é a solidão já comentada, pois nem a mãe (ainda viva na época), nem a filha de Dilma aparecem, marcando a posição da presidente de separar a vida pública da privada. Radicalmente diferente é a postura do atual mandatário, exemplo cabal do patrimonialismo que sempre marcou o Brasil, na mistura dos interesses familiares com as questões de Estado.

Por tudo isso, Alvorada dá um embrulho no estômago e uma melancolia, ao lembrar que ali começou todo esse despautério instaurado desde 31 de agosto de 2016, agudizado a partir de 1º de janeiro de 2019, com a ascensão do bolsonarismo. Dói ver a consumação de um processo injusto, que buscou por vias tortuosas o acesso ao poder, negado pelas urnas em quatro eleições consecutivas. O caminho foi o de romper a ordem democrática por uma via aparentemente legal, configurando a nova forma de dar golpes na América Latina, sem tanques nem derramamento de sangue, e respaldada pelas falácias do “ordenamento jurídico” e das “instituições que estão em pleno funcionamento” – como aliás se deu anos antes no Paraguai, na deposição-relâmpago do presidente Fernando Lugo, em 2012.

O filme circunscreve-se ao Palácio da Alvorada, diferente dos mais abrangentes O processo (2018, de Maria Augusta Ramos) e Democracia em vertigem (2019, de Petra Costa) que, junto com o filme de Anna Muylaert e Lô Politi, formam um tríptico de documentários sobre os últimos cinco anos da política brasileira. Não à toa, os três são dirigidos por mulheres, como se só o olhar feminino pudesse escrutinar e constatar toda a tristeza de ver a destruição moral, social, econômica, ambiental, cultural e educacional que se abateu sobre o país.

Aliás, sensibilidade feminina que Anna Muylaert já tinha demonstrado tão bem em Que horas ela volta? (2015), um dos melhores filmes brasileiros produzidos no século XXI. Comparado a Alvorada, o filme com Regina Casé resolve melhor, esteticamente falando, a demonstração das questões políticas que estão no cerne dos acontecimentos de 2016, ao desnudar com incrível lucidez os mecanismos da elite para inviabilizar a ascensão das classes socialmente mais frágeis nos governos Lula-Dilma (2003-2016)[1].

Em todo o caso, as cenas finais do documentário de Muylaert e Politi fazem pensar, pela beleza e pela simplicidade. Primeiro, a imagem do pássaro desnorteado que quer sair, mas não atina onde está a janela aberta (uma metáfora da gente, os brasileiros progressistas?); depois, a última tomada: um conjunto de empregadas, mulheres como as diretoras e a presidente, sentam-se na cadeira que era ocupada por Dilma e brincam por segundos de serem as todo-poderosas da nação. Mais mulheres, mais gente do povo, mais diversidade no poder, é isso que o filme parece dizer. Que bom: no encerramento, surge um rasgo de esperança no crepuscular Alvorada.



[1] Sobre esse filme, ler crítica postada no blog, mais abaixo.